segunda-feira, 3 de novembro de 2008

4 – Sobre a ausência de foco em teorias da verdade:

Estatuir a prática como pilar de validade do conhecimento somente implica que o valor “verdade” seria dado pela comunidade lingüística; não constituiria, portanto, uma propriedade objetiva do mundo. A “verdade”, pois, pertenceria ao âmbito do discurso, não ao âmbito do mundo. Em outras palavras, a “verdade” ou “falsidade” de uma proposição seria dada segundo convenções semânticas, de acordo com os interesses da comunidade. Sem embargo, é evidente que a experiência cumpre papel importante nesse esquema. Um jogo de linguagem somente faz sentido para quem já tem um conhecimento prévio dos elementos fundamentais que são arranjados nesse jogo. Somente nesse sentido é que haveria “reinado dos meios”. Demais, proclamar que a vida não tem um significado intrínseco ou transcendental não acarreta que significados não possam ser construídos no mundo prático. É importante ter essas considerações em mente de sorte a evitar que o pragmatismo seja confundido com uma tese muito mais radical, que é o relativismo. A objetividade do conhecimento, no pragmatismo, não é descartada, mas entendida segundo critérios lingüísticos dados socialmente pela comunidade em confronto com a experiência. O pragmatismo, portanto, não é incompatível com a objetividade do conhecimento, compreendida nesses termos. Nessa ordem de idéias, as críticas mais fortes de Carvalho, embora possam também ser estendidas, atenuadamente, ao pragmatismo, são muito mais pertinentes ao relativismo. Essa falta de clareza acerca do alvo precípuo das críticas empresta aos argumentos de Carvalho, dirigidas contra a “subjetivização” do conhecimento, indesejável cariz de generalização.
Demais, não é verdade que, sem fundamentação forte, de tipo transcendental, seja impossível existir um discurso ético que não resulte em puro “desejo de poder”. Ora, é perfeitamente possível construir um discurso ético com base em intuicionismo ou utilitarismo, sem necessidade de apelar para um “a priori” radical. Aliás, o fato de que muitos ateus seguem máximas éticas que lhes trazem, em última análise, prejuízo, é a prova baculínea dessa possibilidade.
Curioso notar, de lado outro, que a ênfase de Carvalho na absoluta necessidade de existência, em sentido aparentemente tão forte, de “consciência individual” como garante da objetividade do conhecimento pode gerar três paradoxos (de graves repercussões no plano político):

a) ausência de um critério claro e objetivo para que se decida, afinal, o que é “verdadeiro” e o que é “falso”, já que nem tudo o que aparece à consciência é, por definição, verdadeiro;
b) possível tensão entre o que a “tradição” afirma como verdadeiro e aquilo que à minha consciência individual parece ser verdadeiro – eu posso, por exemplo, crer sinceramente que a grama que eu vejo neste momento é azul, muito embora a “tradição” diga que não o é (o que está a indicar, no mínimo, a existência de ambigüidade no discurso de Carvalho no concernente ao uso do termo “tradição”);
c) irônico abraçamento de um solipsismo “subjetivista” (de todo indesejado por Carvalho) ante a falta do estabelecimento de critério minimamente seguro e contrastável de “verdade”.
5 – Sobre a teoria de castas e a teoria histórica:
Não se percebe muito claramente como é possível compatibilizar o endosso a uma teoria de castas e rejeitar, tout court, a adoção de uma teoria histórica. Com efeito, se a teoria de castas pretende estabelecer um modelo geral e supra-histórico para a compreensão dos fenômenos sociais contingentes, ainda que não tenha a pretensão de ser um modelo preditivo de longo prazo, parece inevitável atribuir-lhe, ao menos, um poder preditivo de curto prazo ou mesmo um mero poder explicativo. Sem essas características, principalmente a segunda, não se entende como a teoria de castas possa sequer servir como instrumento para a compreensão de fenômenos sociais efetivamente acontecidos (o que Carvalho, durante o curso da obra, em suas análises históricas, não se furta a fazer).
6 – Sobre a polêmica de Cantor:
Parece haver, nessa discussão, uma confusão semântica. Carvalho fala, assumidamente, de infinito em sentido metafísico. Cantor, ao menos da maneira que foi apropriado pela matemática moderna, em sentido lógico estrito senso, isto é, lingüístico-formal. Trivialmente, são duas esferas diferentes. Ainda que Euclides não estivesse consciente da separação conceitual entre os dois âmbitos, parece claro que Cantor, no que refuta, do ponto de vista formal, o axioma euclidiano, trata do universo puramente matemático e não do universo metafísico. Aliás, no segundo sentido (metafísico), a matemática moderna tende a não falar mais nada sobre o assunto. Isso seria, hoje, objeto da filosofia da matemática. Claro, é evidente que o argumento de Carvalho (a bem da verdade, é de Guénon) contra Cantor pretende ser metafísico e reverberar na matemática, justamente porque Carvalho, assim como Guénon, assume o pressuposto de que não haveria distinção forte entre mundo e linguagem, esta seria um reflexo daquele. A refutação, portanto, valeria tanto para a metafísica quanto, secundariamente, para a matemática formal. Entretanto, para que a crítica, com esse duplo foco, se sustentasse, haveria de se comprar a tese de que realmente não haveria distinção forte entre o âmbito metafísico e o âmbito matemático. Ora, mas todos os sistemas para-consistentes em matemática são montados a partir dessa dicotomia e sua consistência formal não é afetada por questões metafísicas. Demais, o simples fato, incontestável, de que a matemática infinitesimal cantoriana de fato funciona, ao menos em parte, no mundo (um exemplo é o cálculo integral) parece ser boa evidência de que o problema talvez deva residir na extrapolação de um conceito de infinito puramente metafísico para o campo da matemática formal, não o inverso. Não se cuida, portanto, de dizer que a crítica a Cantor esteja necessariamente errada, mas que, se dela se pretende extrair desdobramentos no campo da matemática formal, então haveriam de ser apontadas evidências no sentido de que a matemática não pode afirmar-se como discurso autônomo independente da metafísica. Por fim, ainda que a matemática não pudesse ser independente da metafísica, ainda haveria que se mostrar que o infinito metafísico, ao qual aludem Carvalho e Guénon, de fato existe e não consistiria, quem sabe, numa mera invenção de metafísicos empedernidos.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

3) Dos “bonecos de palha” e outras figuras de retórica:
a) Afirma Carvalho sobre o newtonianismo (p. 146):

“Ao rejeitar aparentemente Aristóteles, a ciência renascentista deu-lhe razão no fundo, na medida em que, para poder matematizar a física, teve se de afastar cada vez mais da realidade sensível até substituí-la totalmente pelos modelos matemáticos. Neste sentido, o cientista moderno que proclama que a física renascentista refutou Aristóteles comete, simplesmente, uma desonestidade intelectual.”

Em outro sentido, dizer que a ciência moderna não refutou o aristotelismo é, também, uma “desonestidade intelectual”. Refutou-a, sim, no sentido mais profundo, no sentido ontológico, uma vez que a física moderna é quantitativa, ao passo que a física aristotélica é qualitativa. É certo, e nisso Carvalho tem inteira razão, que o custo dessa mutação ontológica foi o afastamento da ciência das propriedades “sensíveis” da matéria (ie. secundárias). Contudo, não se pode olvidar do fato de que foi graças a esse afastamento que todo o conhecimento e a tecnologia modernos puderam ser desenvolvidos, o que não se conseguiu com os princípios da física do Estagirita. O ceticismo aristotélico quanto à utilização da matemática, portanto, não pode ser entendido sem a devida contextualização, sob pena de anacronismo. À dúvida aristotélica, deve-se opor a seguinte indagação (que não podia ser oposta, com essa força, à época de Aristóteles): se a matemática nos afasta do mundo, porque ela funciona tão bem no mundo? Um partidário do realismo científico diria que funciona, precisamente, porque lida com a estrutura mais profunda e verdadeira da realidade, para além das meras aparências do mundo sensível. A desconfiança aristotélica quanto à matemática, em verdade, parece ser tributária muito mais da falta de conhecimento que os próprios gregos (e Aristóteles) tinham do mundo empírico do que de uma radical visão metafísica qualitativa da natureza. É de indagar se, nascido hoje, Aristóteles ainda teria as mesmas ressalvas acerca da utilização da matemática, ao menos em relação aos fenômenos que independem, trivialmente, para sua ocorrência, da consciência humana.
b) Carvalho sobre Galileu (p. 151):

“Mas um fundo de charlatanismo parece já ter sido introduzido na física por Galileu, quando proclamou ter superado a noção da ciência antiga, segundo a qual um objeto não impelido por uma força externa permanece parado – uma ilusão dos sentidos, segundo ele. Na realidade, pontificava, um objeto em tais condições permanece parado ou em movimento retilíneo e uniforme. E, após ter assim derrubado a física antiga, esclarecia discretamente que o movimento retilíneo e uniforme não existe realmente, mas é uma ficção concebida pela mente para facilitar as medições. Ora, se o objeto não movido de fora permanece parado ou tem um movimento fictício, isto significa, rigorosamente, que ele permanece parado em todos os casos, exatamente como o dizia a física antiga, e que Galileu, mediante um novo sistema de medições, conseguiu apenas explicar por que ele permanece parado. Ou seja, Galileu não contestou a física antiga, apenas inventou um modo melhor de provar que ela tinha razão, e que o testemunho dos sentidos, sendo verídico o bastante, não tem em si a prova da sua veracidade – coisa que já era arroz-com-feijão desde o tempo de Aristóteles. Foi este episódio que inaugurou a mania dos cientistas modernos de tomarem simples mudanças de método como se fossem ‘provas’ de uma nova constituição da realidade.” (destaques no original).
É cristalino o equívoco em que labora Carvalho. O que Galileu negou foi a existência efetiva (e não a impossibilidade metafísica) de um sistema ideal em que o movimento retilíneo e uniforme e a ausência de movimento pudessem ser as alternativas para um estado do corpo. A negativa de Galileu, quando bem entendida, tem por objeto, portanto, a existência material das próprias condições iniciais necessárias para que o experimento possa realizar-se de fato. Ora, se as condições iniciais são fictícias, a alternativa entre movimento retilíneo e uniforme e a ausência de movimento também é fictícia. É absolutamente inválido, sob o aspecto lógico, negar as condições iniciais de um problema e pretender derivar, com base na formulação rejeitada do problema, uma de suas soluções previstas Com efeito, quando se rejeitam as condições iniciais, rejeitam-se também, como necessárias, as soluções previstas no enunciado. É ilógico rejeitar as premissas do problema e pretender manter (uma de) suas conclusões, de modo necessário. Se o sistema ideal suposto no problema inexiste, a única conclusão lógica é afirmar que a própria dicotomia prevista (M.R.U. ou ausência de movimento) pode ser enganadora. Refutadas as condições inicias do enunciado, nada pode ser dito, com base nessas condições iniciais, sobre ele, muito menos extrair-se uma conclusão obrigatória. Exemplificando: se não existe, na realidade material, um sistema sem atrito, não está o corpo adstrito a movimentar-se de forma uniforme e retilínea nem tampouco a ficar parado, porque essas são possibilidades, dadas pelo problema, para um sistema sem atrito. Obviamente, um sistema com atrito é outra história. Neste último, segundo Galileu, o corpo, ao deixar de ser submetido a uma força “externa”, não se movimenta de forma retilínea nem fica parado, o corpo move-se segundo o princípio da inércia. Carvalho, em verdade, perde-se ao não compreender que a inexistência material e contingente de sistema ideal, admitida por Galileu, afeta apenas o âmbito empírico (do existente), não o âmbito teórico (do possível). Como experiência de pensamento, o movimento retilíneo e uniforme, em Galileu, existe, sim, em possibilidade, num sistema idealizado, embora possa não existir, contingentemente, no mundo dos fatos. Para Aristóteles, sequer no mundo idealizado (sem atrito) o movimento retilíneo e uniforme existiria, porque ele é, na lição do Estagirita, impossível do ponto de vista teórico – não é uma possibilidade pensável dentro da sua teoria física – e não apenas do ponto de vista meramente factual. Em síntese, a impossibilidade de tal movimento (M.R.U.), para Aristóteles, é dada a priori pela sua própria teoria física, já para Galileu a inexistência de tal movimento (M.R.U.) é dada a posteriori pelas contingências do mundo empírico, não pela sua teoria (que, aliás, o admite expressamente, daí porque, via de conseqüência, refuta a teoria aristotélica). Em linguagem moderna, diríamos que a impossibilidade aventada por Aristóteles é metafísica (abarca todos os mundos metafisicamente possíveis), ao passo que a inexistência aventada por Galileu é empírica (abarca apenas este mundo empiricamente existente). Aristóteles fala de impossibilidade no próprio âmbito teórico, Galileu, de mera inexistência no âmbito empírico (ilustrando o que diz Galileu com uma analogia: no nosso mundo, não existem dragões, mas não há lei física que afirme ser impossível a sua existência, é mera contingência de nosso mundo empírico). Eis o erro fundamental de Carvalho: entender o termo “inexistência” (empírica, contingente), em Galileu, como sinônimo de “impossibilidade” (metafísica, necessária).

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

COMENTÁRIO E DEMONSTRAÇÃO PORMENORIZADA DA PROCEDÊNCIA DE ALGUNS PONTOS ESPECÍFICOS DAS CRÍTICAS:

1 – Das falácias:
a) Carvalho afirma (p. 51), acerca de Epicuro, o que se segue:

“Se os deuses falam, é porque pensam. Se pensam, têm memória e imaginação; e como tudo o que aparece na memória e na imaginação tem, segundo Epicuro, existência (só que mais rarefeita que a do corpo), segue-se que as coisas que os deuses recordam e imaginam existem materialmente nesse mesmo instante. Sendo essas coisas, porém, mais rarefeitas do que os corpos dos deuses que as imaginam, a equação epicúrea de que rarefação = durabilidade obriga-nos a admitir que elas são mais duráveis do que os deuses mesmos. E se por acaso ocorresse a um deus a idéia desastrosa de pensar num gato ou numa lagartixa, estes miseráveis mortais ficariam, ipso facto, dotados de uma durabilidade maior que a dos deuses.”

É evidente a falácia do argumento. Ainda que os deuses “pensassem”, no sentido humano do termo (Epicuro não diz que eles “pensam” como humanos, apenas que “conversam” entre si, seja lá exatamente o que isso signifique), em lagartixas e gatos, a conclusão lógica do raciocínio não seria, como pretende Carvalho, que a própria lagartixa ou o gato, isto é, os objetos extra-mentais (em linguagem moderna: as referências), tornar-se-iam, ipso facto, mais duráveis do que os deuses, mas, antes, que as idéias dos deuses sobre aqueles seres extra-mentais (gatos e lagartixas) seriam mais duráveis do que eles, deuses. Em suma, não se segue das premissas expostas a conclusão de que a lagartixa e o gato seriam mais duráveis do que os deuses, mas, tão-somente, de que as imagens mentais de lagartixa e de gato o seriam, ainda que sejam, elas mesmas, materiais. Carvalho opera um salto lógico ao passar da mera imagem mental (ainda que seja também material) à própria referência. O argumento, portanto, é curto e, suas conclusões, falaciosas. Sem embargo, além de ser curto, o argumento, a rigor, não poderia ser corrigido, mediante a explicitação de premissas que estão ocultas, a fim de preservarem-se íntegras as conclusões, sem que, com isso, fosse gravemente afrontado o próprio sistema epicúreo.
Dessarte, os simulacros, para Epicuro, não são as próprias coisas, mas projeções dessas, de modo que imaginar uma coisa, repita-se, não converte o pensamento em realidade extra-mental. A falácia de Carvalho reside na pretensão de derivar logicamente da mera existência do pensamento (sobre algo) a existência extra-mental desse algo. Explica-se: é certo que, na teoria física epicúrea, a existência do simulacro, da sensação, garante, ipso facto, a existência extra-mental do objeto, já que o primeiro (simulacro) emana necessariamente do segundo (objeto). Contudo, há de se atentar para o seguinte. Uma coisa é afirmar que a sensação deve corresponder necessariamente a um objeto extra-mental. Outra, muito diversa, é dizer que cada resgate à memória – na linguagem epicúrea, cada prolepse – procedida pelo indivíduo (mesmo que esse “indivíduo” seja um deus) substancializa, a cada uma dessas vezes, o objeto lembrado, na esfera extra-mental. Deveras, o que deve ter um correspondente obrigatório no mundo extra-mental é a imagem formada pela experiência (sensação) direta com o objeto, isto é, com os simulacros emanados do objeto. No entanto, o mero resgate da lembrança (prolepse) daquela imagem (sensação) guardada na memória não tem o condão de plasmar novamente o objeto lembrado no mundo externo ao indivíduo. Daí porque mesmo que os deuses pensassem sobre uma lagartixa ou um gato, tal fato não converteria o pensamento em uma nova lagartixa ou em um novo gato, a povoarem o universo extra-mental do indivíduo. A um, porque, fosse esse pensamento provocado por uma sensação, o objeto já teria de preexistir, no mundo, à sensação – não seria, portanto, o pensamento que lhe daria consistência física na realidade extra-mental. A dois, porque, fosse esse pensamento um resgate de memória (prolepse), não só a lembrança armazenada como até mesmo a sensação do objeto (a imagem/simulacro) teriam de preexistir ao objeto – não seria, portanto, de igual modo, o pensamento que lhe daria consistência física na realidade extra-mental (a esse propósito, ver Giovanni Reale, História da Filosofia Antiga, vol III, pp. 155 e seguintes).
b) Outra afirmação de Carvalho sobre Epicuro (p. 47):

“(...) tentemos tirar as conseqüências lógicas da teoria (de Epicuro). Se os deuses são, de um lado, o modelo do bem, e, de outro, a imagem do ideal espiritual que norteia os esforços do asceta epicurista, então eles não apenas são causa de alguma coisa, mas o são duplamente: em linguagem aristotélica, são causa formal do bem e causa final da vida ascética.” (destaques no original).

Claramente é falaciosa a conclusão. Os deuses, para Epicuro, têm um aspecto positivo meramente como modelos, como ideal de vida. Rigorosamente, os deuses não são “o modelo do bem”, eles são o modelo da boa vida, isto é, da vida contemplativa. O bem não é identificado com os deuses. Em linguagem aristotélica, eles, os deuses, seriam, portanto, a causa final da vida ascética, mas não a causa formal do bem, como erradamente sustenta Carvalho (ademais, parece de todo estranho à metafísica aristotélica perguntar-se, como pretende Carvalho, acerca da causa formal do bem, senão de modo tautológico e auto-referente). Eles, os deuses, somente seriam, em certo sentido, causa formal do bem se eles próprios fossem o bem. Mas não o são. Os deuses epicúreos apenas contemplam o bem. Se o contemplam, não podem ser, evidentemente, o próprio bem (sua causa formal). Mutatis mutandis, o erro de Carvalho é crer que um modelo ou um símbolo sejam a própria coisa simbolizada, como se um santo cristão que leva uma vida exemplar fosse a própria encarnação do bem e não um mero modelo ou símbolo de boa virtude cristã. Assim os santos, assim os deuses passivos de Epicuro.
2) Da aproximação entre Epicuro e Marx:
A falácia antes apontada em 1 “a” é, aqui, importantíssima para perceber a maior fraqueza da aproximação que Olavo tenta fazer entre Epicuro e Marx. Com efeito, se a imaginação, em Epicuro, não tem o poder de alterar a realidade externa – aquela dos objetos, da materialidade extra-mental –, mas apenas a realidade interna – aquela dos simulacros (quando percebidos por um dado indivíduo ou um conjunto de indivíduos), da materialidade intra-mental –, então a “revolução” epicúrea é mera alienação individual, um ensimesmamento, ainda que seja um delírio compartilhado por muitos, ao passo que, em Marx, é verdadeira transformação ativa, via revolução de classe, da realidade extra-mental.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Opinião Geral sobre o Livro

É evidente que O Jardim das Aflições foi confeccionado em dois momentos muito distintos (inclusive do ponto de vista da maturidade intelectual) da vida do autor, num período em que Carvalho parecia iniciar sua migração de um pensamento tradicionalista mais ortodoxo para um pensamento mais conservador (de direita). O que poderíamos chamar de a primeira metade da obra, que termina com o Livro 3, mostra Carvalho, ainda, a digerir suas fundas impressões sobre a palestra de Motta Pessanha, de sorte a tentar compreender no que consistiria a “tradição do materialismo”, bandeira sob a qual estariam reunidos, alegadamente, pensadores de feição tão díspar como Epicuro e Marx, bem como a estabelecer no que residiria a suposta aversão dessa assim chamada “tradição” à boa-nova da “consciência individual”, proclamada e concretizada, segundo Carvalho, pelo Cristianismo. Quanto a essa primeira parte (principalmente), algumas CRÍTICAS GERAIS, a nosso ver, fazem-se pertinentes:

1) ausência de maior amarração conceitual e de definições ostensivas e menos vagas de termos centrais no livro – como, por exemplo: "consciência individual", "verdade", "espiritualismo",
"tradição;

2) perpetração de falácias, algumas bem evidentes, que conferem desagradável ar retórico a parte da argumentação – vide caso das falácias (adiante demonstradas) da “lagartixa e do gato” e da transformação da realidade extra-mental por meio da prática do tetrafarmacon;

3) criação, por vezes, de bonecos de palha (ou expedientes retóricos semelhantes) – como no caso de Kant, Galileu e Newton;

4) encampação de argumentos que, aparentemente, não são de autoria própria, sem a pertinente citação à fonte – como no caso da crítica a Cantor, que se funda em análises efetuadas por René Guénon;

5) falta de foco mais fino em teorias sobre a “verdade” – o que leva Carvalho a juntar numa mesma rubrica, talvez de forma contra-produtiva, diversos critérios veritativos de implicações sensivelmente distintas, como o pragmatismo, o relativismo e o deflacionismo;

6) afirmações históricas peremptórias e desprovidas de menção a bibliografia mais abrangente no concernente a assuntos sabidamente controversos – como a natureza política da Inquisição espanhola, a liberdade de ir e vir do servo medieval, a relação esoterismo X exoterismo no Cristianismo;

7) ausência de exposição mais sistemática do pensamento “tradicionalista” ou “espiritualista” – recorrentemente invocado como sendo o conteúdo que, por oposição, dá substância ao “materialismo”.

8) tensão na adoção de uma “teoria de castas” – de inspiração “tradicionalista” – e na rejeição, simultânea, de qualquer teoria histórica.


Na segunda metade da obra, do Livro 4 em diante, é notável (e impressionante) a subida de qualidade do texto, pelo que muitas das críticas alhures referidas deixam de ter aplicação. Sobre as próprias conclusões da obra, são inequivocamente instigantes, mas somente podem ser postas à prova por meio de extensa pesquisa empírica que escapa, presentemente, a nossos objetivos marcadamente conceituais. Uma constatação inusitada da crítica “tradicionalista” feita por Carvalho à modernidade é sua surpreendente semelhança às críticas feitas por autores pós-modernos (alguns filiados a correntes neo-marxistas), como Lévinas, Deleuze e Baudrillard (ie. manipulação do aparato lingüístico-conceitual pelas elites, deificação da ciência como intérprete autêntica da realidade, funcionalização absoluta do indivíduo, opressão metafísica da sociedade de produção, etc.).
aaaaaa
De um modo geral, O Jardim das Aflições, conquanto seja obra provocadora e aguda, mormente em sua segunda parte, afigura-se mais como um livro de introdução ao vasto universo abordado por Carvalho, principalmente no que concerne às questões mais conceituais e metafísicas, que, por vezes, são tratadas superficialmente pelo autor. A impressão é de que o público alvo de Carvalho, nessa obra, não é aquele mais habituado à discussão filosófica e política, mas um público mais leigo, para o qual um apelo retórico (e até panfletário) muitas vezes é mais eficiente, do ponto de vista prático, da ação, do que uma exposição rigorosa do argumento.

Uma última observação de caráter geral deve ser feita. Para Carvalho, na linha do pensamento filosófico clássico (vide Aquino), somente existe verdadeira liberdade quando o indivíduo age de acordo com a moral e com o conhecimento objetivo. O erro e o pecado não são manifestações, portanto, da própria liberdade, mas meros sinais de que ela existe. É evidente que esse pressuposto é incompatível com um liberalismo político em sentido mais forte. Com efeito, nessa ordem de idéias, ainda que se entenda por bem resguardar a esfera estritamente privada dos indivíduos, na qual eles poderão “errar” e “pecar” a salvo da vigilância direta da sociedade, resta patente que a exteriorização de comportamentos considerados imorais, segundo os parâmetros “tradicionais”, é potencialmente subversiva, pelo que, em tese, poderia ser alvo de proibição. Assim, por exemplo, o homossexualismo e o ateísmo, que poderiam ser tolerados na esfera rigidamente privada dos indivíduos, mas não poderiam, possivelmente, ser socialmente tolerados como discurso político (ie. proselitismo). Aí está o conservadorismo (anti-liberal) de Carvalho exposto ao sol: monismo de valores e desconfiança da “excessiva” liberdade individual, quando traduzida em comportamento de índole política (reformista).

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Resumo de O Jardim das Aflições - Parte VII

O novo império, prometendo uma sociedade de iguais, teve que ocultar a distribuição real básica de poder, isto é a existência das castas dominantes aristocráticas e sacerdotais. Assim, o preço da expansão nomninal dos direitos foi a concentração estúpida do poder por meio do segredo. Olavo, no entanto, observa que as castas ressurgiram mais tarde na forma da classe dos políticos e da burocracia estatal e dos intelectuais e formadores de opinião. Ele passa então a descrever como também, com respeito a essas classes visíveis, houve uma concentração de poder por meio da expansão nominal dos direitos.

Essa concentração de poder obedece um mecanismo muito simples. Para cada direito garantido por lei, é preciso quehaja alguém que tenha o dever de garantir esse direito. A multiplicação dos direitos, portanto, leva à multiplicação de instâncias do Estado que se dedicam a garantir esse direito. E garantir o direito aqui quer dizer: assegurar que a ideologia maçônica imperial ali vigore. Cada minoria que reclama por um direito (ou em nome da qual se reclamam direitos, como as crianças), não pode ter certeza se daí em diante seus membros realmente terão uma vida mais livre. No entanto, ela pode estar assegurada que uma secretaria composta de indivíduos nas mais recentes teses da intelectualidade reinante prontamente surgirá, para fiscalizar a vida e as relações da dita minoria, para assegurar sua liberdade.

As exigências utópicas das minorias, então, longe de desestabilizarem o Estado o complementam, pedindo que ele intervenha de cada vez mais direta na vida dos indivíduos. O que ocorre então é a destruição dos poderes intermediários representativos: em vez do indivíduo ser representado por uma família dentro de uma comunidade dentro de uma cidade etc... até chegar ao estado, cada nível desses representando o inferior e tendo que prestar contas a ele, o indivíduo se encontra diretamente relacionado com a plena potência dos burocratas estatais, que não representam ninguém a não ser seus chefes numa hierarquia real que só termina nos poucos que realmente detém o poder.

Na realidade, embora em um primeiro momento esse processo fortaleça o Estado nacional, ele na realidade conduz ao império global, derrubando até mesmo a mediação que o Estado realiza entre o povo e organizações globais.

O iogue comissário era, sem sabê-lo, um sacerdote do novo império americano. É ele, o poder mundando que busca o poder total, desconhecendo qualquer medida supraterrena, nem mesmo pretendendo ser ele mesmo uma medida supraterrena, que se beneficia com o estreitamento da consciência e o desvio do intelecto. Os homens seguem aqueles aos quais está confiada sua felicidade. Se sua felicidade não se resume à vida terrena então não é só César a quem deve obediência. Caso contrário....

Qual é então a situação contemporânea descrita pelo Jardim das Aflições? Após o final da guerra fria o projeto imperial global se afirma cada vez mais: um projeto de obtenção de poder em escala mundial legitimado pelas grandes massas ocidentais que, não vendo que a realidade tenha qualquer dimensão para além do poder mundano, não conseguem justificar nenhuma norma ao qual esse deve obedecer. Os focos de resistência a esse projeto são justamente os centros onde as tradições religiosas são mantidas vivas e os homens ainda não ensinados a olhar para o alto. No entanto essas mesmas tradições, quando petrificadas em fundamentalismos e dividias pelo sectarismo se tornam peões do plano imperial, que fomenta as divisões para justificar seu olhar laico “imparcial” e para desviar a atenção do perigo real do poder de César.

terça-feira, 30 de setembro de 2008

Resumo do Jardim das Aflições - Parte VI

A aristocracia do novo império é, portanto, maçônica e a maçonaria desempenha o papel sacerdotal do poder moderador, de abrigar as facções de poder em disputa e legitimar o vencedor. Ela se distingue da Igreja não tanto pela sua ideologia infinitamente elástica mas seu modo secreto de funcionamento.

De fato aquilo que caracteriza a política contemporânea desde a participação maciça da maçonaria e de outras sociedades secretas nas revoluções americana e francesa é o poder acumulado das organizações secretas, cuja influência (na maior parte das vezes não direto, mas sacerdotal, como foi observado acima) chega a ser tanta que ela se torna inimaginável para o homem comum. O próprio imaginário do cidadão da sociedade democrática moderna, impregnado com a imagem da época contemporânea como a época da expansão dos direitos, impede que a noção da ação secreta na política seja algo mais que uma hipótese abstrata.

Esse despreparo do homem contemporâneo e em particular do intelectual é uma peça chave para que a influência das sociedades secretas chegue a moldar as concepções da população inteira. Pois isso significa que, quando ele conhece alguma sociedade secreta/esotérica ou guru misterioso, o intelectual moderno se encontra sem instrumentos para elaborar criticamente suas experiências. Desse modo, ele tende quase sempre à subserviência e à mistificação do fenômeno, ocultando sua verdadeira natureza e aumentando seu poder sobre o imaginário social.

A maçonaria, dado seu caráter secreto, só pode ser o esoterismo da religião do Império. Qual seria seu exoterismo? É a pluralidade de seitas que se multiplicam no ambiente democrático, protegida pelo estado laico, que Olavo no Jardim considera como o único “ganho” real da revolução americana.

O estado laico foi originalmente o arranjo escolhido para manter a paz numa nação nascente onde havia uma notável variedade de seitas protestantes. Sua conseqüência, no entanto, foi “a liquidação do poder político das religiões”.

No Estado laico, toda lei religiosa cessa de ter qualquer validade pública. Por isso, os critérios que presidem a vida social são supra-religiosos e o Estado se torna o árbitro entre os conflitos entre leis religiosas. Assim as leis religiosas só podem ser seguidas na medida em que elas estão de acordo com a moral oficial promovida pelo Estado. Ou seja, a religião é reduzida ao conceito de “espiritualidade privada” ou “religiosidade”, um adendo subjetivo, suplementar à moral laica.

Reduzidas à um aspecto subjetivo, individual, as grandes religiões, que formaram e sustêm as civilizações históricas, são equiparadas às seitas, dando a impressão do “supermercado religioso”. Não podendo aderir a qualquer lei religiosa, o Estado nega o direito à perpetuação das tradições religiosas por parte dos pais e protege o direito dos filhos de abandonarem as mesmas. De um modo geral, o Estado privilegia as morais agnósticas em qualquer disputa e convida todos a abandonarem seus grupos de referências com suas morais “suplementares”.

A religião, no entanto não é apenas uma moral subjetiva. Ela dá ao homem uma imagem simbólica do mundo, transmitida por meio de narrativas míticas (que fixam cosmovisões, valores e princípios educacionais) e iniciáticas (que atualizam e adaptam os mitos às situações locais e específicas). Ao reconhecer as situações das narrativas na sua própria vida, o ser humano é capaz de discernir o sentido da sua vida. Os mitos não estão aí para serem interpretados, mas para serem a chave para a leitura da realidade.

O cidadão do Império maçônico interpreta o mundo com base em mitos maçônicos, os quais passam a predominar nos séculos XVIII e XIX quando narrativas maçônicas passam a predominar nas grandes obras literárias. O desenlace derradeiro das narrativas cristãs se encontrava na salvação da alma e portanto, para além da obra, cujo sentido era deixado em aberto. As narrativas maçônicas, ao contrário, possuem um sentido puramente terrestre, de auto-realização no mundo imanente e potências supraterrenas só atuam como co-autores do sucesso e do fracasso mundano.

Os segredos cuja descoberta constitui o sentido da narrativa maçônica não são mais os Grandes Mistérios referentes ao conhecimento do infinito, mas os Pequenos Mistérios referentes às forças profundas que dirigem a história e o cosmos e ajudam o homem na sua realização terrena. O ideal humano deixa de ser aquele que faz a ponte entre o céu e a terra para ser a realização máxima em todas as esferas mundanas. Se repete na literatura o desvio do intelecto para o espaço e o tempo que ocorrera na filosofia.

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Resumo do Jardim das Aflições - Parte V

Essa conversão [da luta entre clero e nobreza na luta entre rei e parlamento] provocou uma alteração significativa no sentido da luta interna ao projeto imperial. O poder espiritual e o poder temporal, que antes se digladiavam, deram lugar para os novos combatentes, ambos representantes do poder temporal. Segundo Carvalho, a dinâmica dessa luta teria resultado, inexoravelmente, numa escalada de concentração de poder. Na ausência de uma tradição comum dentro da qual pudesse o processo político ocorrer, justamente o que era oferecido pela subordinação do poder temporal à autoridade espiritual, a luta pelo poder prolongar-se-ia indefinidamente.

A interminável luta política fora do abrigo da religião lembra o incessante conflito entre a natureza e a história quando eles não mais são unidos por um mesmo princípio transcendente. De fato, as teorias modernas que buscam divinizar o espaço e o tempo são a contrapartida intelectual da autodivinização do monarca absoluto e a nacionalização das igrejas. Para que o homem deixasse de obedecer a seus sacerdotes em favor do rei foi necessário que ele não mais buscasse o divino além do mundo, mas o encontrasse nas dimensões imanentes da natureza e da história. Assim como na República aos sucessivos regimes da cidade correspondem sucessivas configurações da alma humana, no Jardim cada projeto imperial supõe uma relação específica do homem com Deus.

O projeto dos impérios nacionais foi sucedido pelo projeto do império revolucionário. A autodivinização da nação substituiu a tensão entre o clero e os nobres pela batalha entre o parlamento e o rei, o corpo místico e seu representante. O novo império resolverá essa batalha ao dispensar a existência de uma autoridade espiritual, mesmo uma nacionalizada, que legitime o império. Enquanto Henrique VIII combinava em si mesmo as figuras de César e Cristo, Napoleão declarará que César é maior que Cristo. E enquanto o iogue comissário conseguia essa “síntese” mediante a ignorância voluntária, o império que ele serve terá como marca registrada o segredo.

Napoleão foi derrotado, mas o mesmo projeto deu fruto nos Estados Unidos, “república imperial, capitalista, maçônica e protestante”. Isso marca a terceira e última translação imperial. É importante observar que as translações imperiais não são só geográficas, mas também mudanças de projeto. E por isso, na translação que implanta o projeto imperial nos Estados Unidos, o projeto imperial ele mesmo deixa de ser o projeto de um império nacional. (1). Para compreender como isso é possível, isto é, um projeto de império que não tenha sua unidade assegurada por uma cabeça imperial nem sua autoridade fundada num corpo místico, é preciso prestar atenção no papel desempenhado pela maçonaria na formação do império americano pós-nacional.

As revoluções francesa e americana, que precedem os projetos da terceira Roma, constituem substituições da aristocracia de sangue européia, incapaz de se libertar de sua relação masoquista com a Igreja, por uma nova aristocracia iniciática. A modernidade caracteriza-se não pela democratização da vida política, mas pelo governo de arisotcracias que agem de forma secreta e fora de todo controle público. Aristocracia de facto, democracia de jure: uma combinação mantida apenas pelo caráter secreto da aristocracia.

Para ser mais específico, a aristocracia do Estados Unidos é toda maçônica: todos os signatários da Declaração de Independência são maçons. Olavo, contudo, rejeita toda noção conspiracionista no papel da maçonaria na história: ela não é um arquiteto invisível da história mundial, mas uma sociedade secreta que, pelo seu próprio modo de funcionar, molda o imaginário de seus membros e delimita seu campo de ação. A maçonaria é responsável segundo Olavo, não por este ou aquele evento histórico determinado, mas pela determinação do âmbito dentro do qual os eventos históricos se desenrolaram.

A maçonaria combina a rigidez iniciática de uma sociedade secreta com a liberdade formal de um grupo de debates. O resultado é que os ritos maçônicos, cuja execução e repetição molda o imaginário dos maçons, são objetos de discussão e interpretação livres, os quais asseguram que o sentido e os efeitos dos ritos permaneçam obscuros sob uma névoa de ambigüidades. A discussão livre só serve para tornar tanto mais tirânica a influência dos ritos sobre a mente.

O outro lado da moeda da névoa entorpecente doutrinal é a submissão que o maçom deve prestar a chefes inteiramente desconhecidos. Tanto em um caso quanto a outra a consciência individual nega a si mesma, se consagrando a ações cujos propósitos nem sentido ela conhece nem compreende. Carvalho diagnostica que esse abandono provém do desejo desproporcional de segurança, do medo injustificado, que faz com que o homem venda sua consciência em troca da proteção de sua vida. Carvalho dá o exemplo das vésperas da revolução francesa, quando a aristocracia francesa se filiou em massa à maçonaria, temendo o porvir.

(1) Por essa mesma razão, é imperioso não confundir as teses do Olavo que serão expostas logo agora com uma forma elaborada da conhecida etiqueta “imperialismo ianque”. Quando o império passou a estar nas mãos dos ianques, ele não cabia mais na mão de nenhum povo. Mais tarde, nos comentários ao Jardim das Aflições, a grande discussão sobre a compatibilidade entre o Jardim das Aflições e a americanofilia recente do Olavo será discutida em mais detalhes.

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Resumo de O Jardim das Aflições - Parte IV

Esse projeto [de um império cristão], no entanto, estaria viciado, assevera Carvalho, desde o começo em face de dois problemas:

A unidade do Império Romano residia na sua religião oficial, que reunia, numa só instituição, as funções sacerdotais e aristocráticas da sociedade estamental. Ora, como o cristianismo, advoga Carvalho, caracterizar-se-ia pela disponibilização do acesso à verdade transcendente à consciência individual (fora de toda mediação estatal), não seria possível que, num império cristão, fosse mantida a antiga unidade romana entre a casta aristocrática e a casta sacerdotal. A conseqüência, portanto, seria que as duas castas, agora apartadas, estariam inelutavelmente engajadas num conflito pela direção do império cristão.

Como então restaurar o império sem uma religião estatal? Mais: como seria possível desestatizar a religião? Não se trataria, alega Carvalho, apenas de encontrar uma solução para que a igreja pudesse desincumbir-se das responsabilidades que herdou do Império Romano, mas, principalmente, de resolver uma contradição inerente à noção mesma de “igreja”. A igreja é, por um lado, a hierarquia espiritual, que tem no seu topo os santos e, por outro, é uma organização política, o governo eclesial terrestre encabeçada pelo papa. A questão seria saber como poderia a igreja constituir-se e preservar-se como uma pura autoridade espiritual sem constituir um poder terreno. A edificação do império fora, segundo Carvalho, a solução desastrada para esse problema: extrusar da igreja o poder temporal num braço armado comandado por um imperador sagrado pela própria igreja.

O segundo problema seria de ordem mais prática. O antigo Império Romano era composto por uma classe aristocrática refinada e unida e contava com farta mão de obra escrava, enquanto os senhores feudais medievos eram incultos e encontravam-se enclausurados cada um em seu próprio feudo, no qual trabalhavam servos com direitos legalmente reconhecidos e não escravos reduzidos à animalidade. A disparidade de base econômica e organização social impedia a replicação na Europa medieval do antigo sistema vigente no Império Romano. Além disso, uma das atribuições do imperador cristão era justamente defender os direitos dos servos dos abusos do poder dos senhores, o que tornava a submissão a um imperador cristão ainda mais incômoda à aristocracia européia.

A ignorância dos senhores não só significaria ausência de cultura administrativa, mas constituiria empecilho na constituição de uma dinastia imperial que servisse aos interesses eclesiásticos. Pois, por um lado, os nobres eram inteiramente avessos ao estudo e ao culto religioso. Por outro, viam os padres com mistura de temor e desdém: transferiam-lhe a aura amedrontadora dos antigos druidas e, ao mesmo tempo, resistiam a aceitar que eles (os padres) pudessem ser alçados, eventualmente, da condição de servos à de nobres.

Nesse contexto difícil, sustenta Carvalho que teria sido somente devido a uma sucessão de acidentes felizes que um império cristão pudera existir sob o reinado de Carlos Magno e de seu sucessor Luís, o Piedoso. Carlos Magno pôde manter os nobres apaziguados apenas na medida em que havia terras para conquistar e riquezas para repartir, enquanto no reinado de Luís fora apenas sua personalidade individual e o temor que inspirava nos súditos que mantiveram a aristocracia alinhada com o projeto do império cristão. Após a morte de Luís, o império cristão se desfez e somente ressurgiu com o Sacro Império Romano, que jamais conseguiu, contudo, ser um império que unisse toda a cristandade ocidental – França e Inglaterra permaneceram obstinadamente dele separadas. Mais grave, o Sacro Império Romano sequer se revelou, durante todo o tempo, um “braço armado” confiável da Igreja. Com efeito, muitos de seus imperadores não só não foram sagrados pelo papa como alguns tentaram mesmo derrubá-lo.

Essa instável relação entre o clero e a nobreza minou o projeto imperial até que o advento das viagens transcontinentais viesse a mudar profundamente a situação dos povos europeus. Com a possibilidade de servir de “braço armado” da fé, conquistar terras e converter povos no além-mar, cada nação passou a postular sua própria candidatura autônoma a império, o que culminou no seccionamento do “braço armado” em vários impérios nacionais concorrentes. Eis, então, que surge grave problema. Ora, uma vez que o império cristão sempre fora compreendido como a manifestação política da igreja, somente poderia haver um império. Pelo menos enquanto houvesse somente uma igreja. A solução encontrada foi, justamente, a nacionalização e a multiplicação das igrejas. Seja pela via da fundação de uma igreja nova (como no caso de Henrique XVIII), seja pela via da cisma gerada pelas igrejas protestantes (como no caso de Suécia e Holanda), seja pela via da “nacionalização” do clero católico local (como no caso de Espanha e Portugal).

A multiplicação dos impérios levou à divisão da igreja, o que converteu o rei da nação no chefe da igreja local. A oposição milenar entre igreja e aristocracia resolveu-se mediante a auto-sacralização do estado, abonada pelos intelectuais das cortes palacianas com recurso à teoria do direito divino dos reis. Isso gerou um enorme problema. Tendo sido identificado o poder temporal com o poder espiritual, que antes regulava e legitimava aquele, restava determinar o modo como se reconhecia e se limitava a autoridade do soberano. A solução encontrada foi a de elevar a nação ao estatuo de um corpo místico, comparável ao corpo místico da igreja, representado agora no parlamento, o qual, por sua vez, sancionava o rei. A eterna luta entre os nobres e o clero converteu-se então na luta entre o rei e a nobreza.

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Resumo de O Jardim das Aflições - Parte III

No bojo do Livro IV d’O Jardim das Aflições, Carvalho procura desvelar a estrutura profunda que subjaz, segundo seu entendimento, à fusão de correntes contraditórias no discurso marxista-epicurista-novaera de José Américo Motta Pessanha. Estrutura essa que estaria epitomada na figura do iogue-comissário. A contraditoriedade das correntes seria revelada como a superfície de uma tensão entre dois movimentos complementares: a divinização do espaço e do tempo, da natureza e da história. De acordo com Carvalho, a divinização de qualquer um dos dois – da natureza ou da história – estaria fadada ao fracasso, pois nenhum deles estaria apto a subsistir de forma independente. A síntese entre os dois pólos somente seria possível com sua subsunção numa unidade de plano superior (metafísico); subsunção, contudo, de todo impossível, uma vez que seria justamente esse o plano que já teria sido abandonado na tentativa de divinizar o mundo imanente. Assim, o único modo para o iogue-comissário sustentar sua posição residiria na ignorância voluntária, que ocultaria o conflito insuperável entre “o deus da história” – Leviatã – e “o deus da natureza” – Behemoth.

Esse conflito seria, de acordo com Carvalho, cíclico por natureza. O culto do Estado (de Leviatã) inevitavelmente esbarraria no fato bruto de que o ser humano está submetido a forças naturais – behêmicas – além de seu controle, capazes de desfazer seus planos e projetos revolucionários do dia para a noite. Da decepção com o fracasso da empreitada leviatânica alimentar-se-ia o “deus da natureza”, Behemoth. No entanto, também o progresso da ciência behêmica conduziria apenas a novos saberes e a novas tecnologias, que somente radicalizariam a desumanização do homem como mero instrumento de medir e de contar. Mais uma vez, o processo desaguaria em decepção, numa pretensa, canhestra e insatisfatória divinização da Natureza, que abriria espaço para uma nova emergência (eternamente malsucedida) de Leviatã. O resultado desse conflito cíclico entre os “deuses imanentes”, que enlouqueceria a comunidade humana, seria, na lição de Carvalho, apenas a potenciação da natureza, de Behemoth, ainda que eternamente acossado por Leviatã.

No Livro V, propõe-se a seguinte pergunta: quia bono? Quem ganha com isso, a quem serve o iogue-comissário? A resposta de Carvalho, desenvolvida ao longo do texto, é que, por trás das tentativas modernas de divinizar o imanente, existe um tema mais antigo e permanente: a obsessão ocidental com a construção de um império. A construção desse império passaria por quatro translações: de Roma para Bizâncio (essa translação não é objeto de estudo no livro), de Bizâncio para diversas instituições políticas candidatas à formação de um império ocidental na cristandade medieval (a primeira vez sob Carlos Magno e a segunda na forma do Sacro Império Romano), depois para os impérios nacionais modernos (com o advento das viagens transcontinentais) e, por fim, para sua última encarnação imperial, consubstanciada nas repúblicas nacionais surgidas da revolução francesa e americana.

Carvalho identifica as origens do projeto imperial no ocidente cristão em três fatores, que teriam se tornado presentes após a queda do Império Romano no ocidente: o acúmulo de funções estatais nas mãos da igreja, a necessidade de proteger a Europa cristã das invasões dos bárbaros e a necessidade de afirmar a independência da igreja com respeito a Bizâncio. Essa conjunção de fatores teria impelido a igreja a construir um império cristão, entendido como seu braço armado para intervir em conflitos com os bárbaros e Bizâncio, e para o qual poderia, ela, a igreja, transferir suas responsabilidades recém-adquiridas.

Resumo do Jardim das Aflições - Parte II

Como sucedâneo da perda do sentido da transcendência metafísica, o homem moderno, partidário do “materialismo”, ter-se-ia voltado à adoração de deuses cósmicos: o tempo e o espaço. O deus “temporal” estaria personificado nas forças históricas e sociais (cujo exemplo mais evidente seria o estruturalismo marxista, de fundo hegeliano); já o deus “espacial”, na ciência (cujo exemplo por excelência seria o positivismo comteano). À perda do sentido da transcendência teria correspondido, portanto, a sacralização do infinito cósmico, isto é, de um infinito material e quantitativo cujos limites e natureza não podemos, de fato, entender (Cusa, Cantor), e a sacralização do tempo, isto é, da dimensão temporal histórica (Hegel, Marx). Em síntese, a perda da transcendência teria provocado a mundanização do sentido da existência humana e o surgimento de um simbolismo religioso deturpado restrito à esfera da imanência.

Carvalho defende que a consciência individual, inimiga jurada do “materialismo”, fora afirmada, pela primeira vez, na Grécia antiga. Sócrates teria sido seu paladino primeiro, ao submeter a “verdade” social e sofística da polis ao escrutínio da contemplação teórica, os deuses antropomórficos do panteão ateniense à verdade transcendente. Sócrates teria inaugurado um espaço próprio para a consciência individual, uma interioridade autônoma, salvaguardada dos cultos públicos das religiões exotéricas (isto é, dos ritos públicos e das regras de comportamento coletivamente regulamentadas), das normatizações sociais, das decisões das assembléias políticas e das ingerências erráticas dos deuses cósmicos sobre o destino dos homens. Em suma, um canal de acesso direto (esotérico) à verdade objetiva, universal, sem necessidade de intermediação de estruturas sociais. É a dimensão vertical (esotérica) do homem com Deus, em oposição à dimensão horizontal do homem (exotérica) com a sociedade e o cosmos. Essa novidade socrática teria causado, segundo Carvalho, a primeira rachadura no paradigma da sociedade antiga, que fora, posteriormente, despedaçado pelo Cristianismo, com a progressiva submersão da cosmovisão greco-romana nos subterrâneos da história.

Nesse diapasão, no escólio do legado socrático, o Cristianismo teria: I) dessacralizado o Estado, ao apartar a dimensão social da dimensão individual (primado da consciência individual, da interioridade esotérica sobre a exterioridade exotérica); II) proclamado a possibilidade do acesso de todos à verdade, ao abolir a existência de conhecimentos secretos (exoterização da verdade). Com o avançar do tempo, contudo, a demasiada institucionalização da Igreja e a sua ascensão como poder político, resultado da necessidade de preencher o vazio deixado pela queda do Império Romano do Ocidente, teria ocasionado um retrocesso na (I) separação entre a dimensão temporal e a espiritual, mediante excessiva e indevida exoterização da (II) verdade sobre a própria consciência individual, ou seja, do mundo da imanência sobre a interioridade religiosa cristã (ie. esoterismo). Essa progressiva exoterização do esoterismo, no sentido da redução do espaço da consciência individual, teria preparado o terreno para que, com o advento dos Estados Nacionais, renascesse o antigo autoritarismo imperial romano, anti-individualista, sacerdotal e tutelar (o Estado sacralizado, assistencialista, da religião oficial), sob nova roupagem. Como na velha Roma pré-cristã de César, o governante voltava, na modernidade, a ser também o sacerdote.

São essas velhas forças anticristãs, anti-individualistas, de afirmação do social sobre a consciência individual (que exoterizam o esoterismo), às quais Carvalho batiza de “gnosticismo”. Um amálgama de ódio ao Cristianismo e de nostalgia da tradição imperial greco-romana, de religião cósmica e de sacralização da sociedade ou do Estado. Gnosticismo esse que teria irrompido, à época dos Estados Nacionais, na forma do Iluminismo Renascentista, com seus “deuses” cósmicos imanentes: Leviatã (deus da história/sociedade) e Behemoth (deus da ciência/natureza). A modernidade “progressista”, seja encarada em sua versão liberal, seja encarada em sua versão socialista (que se devoram inútil e perpetuamente uma à outra), seria a mais recente manifestação dessas milenares forças gnósticas e anticristãs, negadoras do espírito e apologéticas da matéria.

(continua ainda hoje)

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Resumo das Idéias Mestras contidas na obra O Jardim das Aflições de Olavo de Carvalho- Parte I

O Jardim das Aflições (É Realizações, segunda edição, São Paulo: 2004), de Olavo de Carvalho, foi escrito, assumidamente, a partir da feroz rejeição do autor à palestra proferia por José Américo Motta Pessanha durante o ciclo de conferências sobre ética, promovida pela Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, em maio de 1990.

Em seu livro, Carvalho procura compreender no que consistiria a denominada “tradição do materialismo”, defendida, com entusiasmo, por Motta Pessanha, tradição essa que, segundo o filósofo por último mencionado, abarcaria pensadores variados como Epicuro e Karl Marx. Para Carvalho, a evidente ausência de uma continuidade de pressupostos teóricos ou mesmo de uma cosmovisão em comum entre Epicuro e Marx (mais do que isso, a verdadeira oposição aparentemente inconciliável existente entre epicurismo e marxismo: o primeiro a enfatizar a necessidade da fuga do homem do mundo real para afirmar o mundo da imaginação e, o segundo, a necessidade da destruição ativa do mundo imaginário para afirmar o mundo real) estaria a indicar que a pretendida unidade teorética da “tradição materialista”, defendida por Pessanha, não passaria de grosseira falsificação histórica e que, a rigor, essa pretendida “tradição” seria parasitária da única tradição historicamente consolidada, a do “espiritualismo” (de Platão a Husserl). Seria, portanto, a aversão ao “espiritualismo”, mais do que uma construção teórica positiva e sólida, que conformaria o verdadeiro perfil da “tradição materialista”.

Dada a aparente impossibilidade de identificar uma afinidade teórica (tampouco estética) entre o pensamento epicúreo e o marxista, como tipos de uma precária “tradição materialista”, restaria, de acordo com Carvalho, a possibilidade única da existência de afinidade prática, no nível da ação. Carvalho identifica essa afinidade de objetivos práticos na rejeição do mundo espiritual (do “espiritualismo”) – ou na rejeição da preponderância do mundo espiritual sobre o físico –, na negativa da possibilidade individual de conhecimento objetivo do mundo e no abraçamento do ethos revolucionário. Tanto epicuristas como marxistas, embora com nomenclaturas distintas (até opostas), buscariam a mesma meta: a destruição da Ordem Natural, a falsificação da realidade objetiva e a dissolução da consciência individual.

Em Epicuro, essa falsificação dar-se-ia por meio da disciplina do tetrafarmacon; em Marx, por meio da superação revolucionária da ideologia capitalista. Segundo Carvalho, a suposta alienação social propugnada por Epicuro, com a fuga para o “jardim” (espaço de meditação consagrado à prática da disciplina do tetrafarmacon), seria, na verdade, uma verdadeira subversão do “sentido da realidade objetiva” por meio do recurso à idealização. Dessarte, depois de admitida a inexistência de distinção substantiva entre aquilo que é e aquilo que eu penso, entre aquilo que o mundo é e aquilo que eu quero que ele seja, o objetivo final da prática do tetrafarmacon consistira na substituição do “sentido da realidade objetiva” pela realidade dos simulacros pensada pelos epicuristas. Como o próprio pensamento seria, para Epicuro, material (ie. a faculdade de pensar teria o poder de conferir existência material ao que é pensado), então o resultado da prática iterativa do tetrafarmacon, em última análise, consistiria na criação de uma realidade material coletiva plasmada pela “imaginação” – desde que todos, é claro, pensassem as mesmas coisas –, que viria a derrogar o próprio “sentido da realidade objetiva”. Essa progressiva substituição do “sentido de realidade objetiva” pela realidade fictícia não se limitaria, defende Carvalho, ao universo mental dos próprios entusiastas do tetrafarmacon, mas se propagaria, ao fim e ao cabo, pelo próprio mundo real, de sorte a substituí-lo por uma nova “realidade social”. Assim, para o autor de O Jardim das Aflições, a suposta alienação epicúrea seria apenas aparente. Quando bem analisada, revelaria o que de fato é: um idealismo revolucionário, que pretende substituir a realidade objetiva pela imaginação coletiva (delírio).

Analogamente, Marx padeceria de mal semelhante: idealismo revolucionário mistificador, que promete entregar o paraíso, mas somente ultima descerrar as portas do inferno. Carvalho afirma que o marxismo, assim como o epicurismo, seria também um falso materialismo, pois, a rigor, apresentaria características visceralmente idealistas (no sentido de rejeitar a realidade objetiva – ie. “não-revolucionária” – em prol de uma realidade socialmente construída pela classe proletária). Em suma, a aparente incompatibilidade entre epicurismo e marxismo seria superada, senão necessariamente do ponto de vista teórico, ao menos do ponto de vista prático. É com base nesse artifício que Motta Pessanha tê-los-ia classificado, ardilosamente, como pertencentes a uma suposta “tradição materialista” teorética (se tradição há, seria fundada somente na praxis – uma vez rejeitada a possibilidade de conhecer o mundo, restaria transformá-lo), ainda que, como pretende haver demonstrado Carvalho, ambas sejam, em verdade, exemplos de idealismo coletivista (anti-realista e anti-individualista).

Dessas conclusões, Olavo de Carvalho extrai as conseqüências que lhe parecem mais nefastas na “tradição” (fabricada por Motta Pessanha) do assim chamado “materialismo”:

a) ataque à consciência individual (em prol de uma consciência coletiva ou de classe);

b) enfraquecimento do critério de “verdade”, em razão da perda do “sentido da realidade objetiva” (em prol da realidade social);

c) subjugação da dimensão teórica à prática (da metafísica à ação social);

d) desprezo da tradição (encômio da ruptura revolucionária).

Advoga Carvalho que tais conseqüências revelar-se-iam os requisitos necessários para o estabelecimento da tirania da maioria e para a destruição do indivíduo como pessoa livre e moralmente responsável por seus atos. O remédio para essa patologia social, ainda que a administração do antídoto seja reconhecida como problemática por Carvalho, seria a reedificação da crença na verdade objetiva, na consciência individual, no primado da teoria sobre a prática e na validade da tradição, o que somente poderia ser levado a termo, em última instância, com o resgate da crença em Deus e na dimensão transcendental (uma vez que, na perspectiva de Carvalho, é na relação privada e personalíssima com o transcendente que se formata e mantém-se íntegra a consciência individual, sem a qual seria impossível apreender a verdade objetiva).

(segue na próxima segunda-feira).

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Apresentação

A proposta do presente blog é criar um espaço de fomento à discussão acerca do conservadorismo. Não se trata, alerte-se desde logo, de fazer apologia ao conservadorismo. Tampouco de rejeitá-lo. O escopo do blog é apresentar o pensamento conservador de forma sistêmica e concatenada, de modo a identificar elementos essenciais e duradouros, se é que existem, dessa particular tradição. Cuida-se, portanto, de traçar um quadro mais amplo do fenômeno, em que possam ser articuladas diversas posições açambarcadas pela rubrica genérica do conservadorismo. Nesse sentido, tentaremos elencar características substanciais do pensamento conservador, em lugar de uma mera classificação formal (ie. de simples manutenção do status quo vigente numa dada sociedade historicamente localizada, em oposição, grosso modo, ao progressismo).

O empreendimento pressupõe o estudo tanto de autores assumidamente de direita como autores que, embora sejam considerados, tradicionalmente, como representantes da esquerda, possam revelar, numa análise mais profunda, traços comuns ao conservadorismo de direita. Também serão abordados autores do denominado “tradicionalismo”, cuja classificação na tipologia reducionista esquerda/direita é problema, no mínimo, de difícil solução. Em suma, o objetivo do grupo é estudar o conservadorismo em sentido lato, o que pode incluir pensadores filiados tanto à direita como à esquerda do espectro político convencional. Identificar os pontos de contato entre pensadores historicamente separados pela Ciência Política mainstream em tradições diversas (muitas vezes até antagônicas) é, talvez, a meta mais ambiciosa do grupo. Um exemplo prático dessa possível aproximação teórica já é notado no surgimento da corrente política conhecida como Third Position.

Discussões políticas reais, atinentes à realpolitik, somente serão abordadas marginalmente, porquanto a orientação do blog é assumidamente acadêmica e teórica.

As postagens serão o resultado condensado dos estudos e das discussões levadas a cabo pelo grupo. Os autores das postagens estarão nominalmente identificados e não deverá ser incomum a eclosão de divergências entre os próprios membros do blog. O grupo terá como proposta estudar um texto ou livro de um pensador específico e as conclusões serão publicadas, periodicamente, no blog. Os livros e textos objetos de exame serão anunciados sempre com antecedência. Em razão do formato da mídia, as postagens deverão obedecer, em princípio, a uma periodicidade semanal, sempre nas segundas-feiras. Dada a complexidade dos assuntos constantes dos textos e dos livros abordados, deverá ser de praxe a publicação das conclusões do grupo em etapas e não em um só bloco, de sorte a facilitar, inclusive, a leitura por parte do visitante. Os livros e textos examinados serão primeiramente resumidos e, em seguida, serão plasmadas as críticas e as impressões dos membros do grupo, sempre com a identificação nominal da autoria das opiniões expostas.

Será muito bem-vinda a participação dos leitores, aos quais concitamos que deixem suas mensagens, sejam a veicularem críticas, elogios ou sugestões. A discussão livre, séria e conscienciosa de idéias é nossa proposta primordial.

Da equipe editorial,
S.R. Kneipp
Uriel Irigaray
Antonio Vargas

S.R. Kneipp
Formado em Direito e em Filosofia pela Universidade de Brasília, escritor e mestrando do curso de pós-gradução de Teoria Literária e Literaturas na mesma universidade, atua profissionalmente na área jurídica. Social-democrata não marxista (ex-simpatizante do PCB), ateu/agnóstico, mas não anti-religioso.

Uriel Irigaray
Formado em Letras com interesse em mitologia e religião. Tradutor e servidor público. Ex-ateu, pró-cristão sem filiação religiosa e pró-conservador interessado em liberalismo, paleo-conservadorismo, libertarianism etc.

Antonio Vargas
Formado em Filosofia pela Universidade de Brasília e com futuro acadêmico incerto no momento. Mantém o blog http://hegelasaboy.wordpress.com/, onde vez ou outra publica idéias filosóficas. Conservador (anti-revolucionário), cristão, mas não anti-moderno.