segunda-feira, 3 de novembro de 2008

4 – Sobre a ausência de foco em teorias da verdade:

Estatuir a prática como pilar de validade do conhecimento somente implica que o valor “verdade” seria dado pela comunidade lingüística; não constituiria, portanto, uma propriedade objetiva do mundo. A “verdade”, pois, pertenceria ao âmbito do discurso, não ao âmbito do mundo. Em outras palavras, a “verdade” ou “falsidade” de uma proposição seria dada segundo convenções semânticas, de acordo com os interesses da comunidade. Sem embargo, é evidente que a experiência cumpre papel importante nesse esquema. Um jogo de linguagem somente faz sentido para quem já tem um conhecimento prévio dos elementos fundamentais que são arranjados nesse jogo. Somente nesse sentido é que haveria “reinado dos meios”. Demais, proclamar que a vida não tem um significado intrínseco ou transcendental não acarreta que significados não possam ser construídos no mundo prático. É importante ter essas considerações em mente de sorte a evitar que o pragmatismo seja confundido com uma tese muito mais radical, que é o relativismo. A objetividade do conhecimento, no pragmatismo, não é descartada, mas entendida segundo critérios lingüísticos dados socialmente pela comunidade em confronto com a experiência. O pragmatismo, portanto, não é incompatível com a objetividade do conhecimento, compreendida nesses termos. Nessa ordem de idéias, as críticas mais fortes de Carvalho, embora possam também ser estendidas, atenuadamente, ao pragmatismo, são muito mais pertinentes ao relativismo. Essa falta de clareza acerca do alvo precípuo das críticas empresta aos argumentos de Carvalho, dirigidas contra a “subjetivização” do conhecimento, indesejável cariz de generalização.
Demais, não é verdade que, sem fundamentação forte, de tipo transcendental, seja impossível existir um discurso ético que não resulte em puro “desejo de poder”. Ora, é perfeitamente possível construir um discurso ético com base em intuicionismo ou utilitarismo, sem necessidade de apelar para um “a priori” radical. Aliás, o fato de que muitos ateus seguem máximas éticas que lhes trazem, em última análise, prejuízo, é a prova baculínea dessa possibilidade.
Curioso notar, de lado outro, que a ênfase de Carvalho na absoluta necessidade de existência, em sentido aparentemente tão forte, de “consciência individual” como garante da objetividade do conhecimento pode gerar três paradoxos (de graves repercussões no plano político):

a) ausência de um critério claro e objetivo para que se decida, afinal, o que é “verdadeiro” e o que é “falso”, já que nem tudo o que aparece à consciência é, por definição, verdadeiro;
b) possível tensão entre o que a “tradição” afirma como verdadeiro e aquilo que à minha consciência individual parece ser verdadeiro – eu posso, por exemplo, crer sinceramente que a grama que eu vejo neste momento é azul, muito embora a “tradição” diga que não o é (o que está a indicar, no mínimo, a existência de ambigüidade no discurso de Carvalho no concernente ao uso do termo “tradição”);
c) irônico abraçamento de um solipsismo “subjetivista” (de todo indesejado por Carvalho) ante a falta do estabelecimento de critério minimamente seguro e contrastável de “verdade”.
5 – Sobre a teoria de castas e a teoria histórica:
Não se percebe muito claramente como é possível compatibilizar o endosso a uma teoria de castas e rejeitar, tout court, a adoção de uma teoria histórica. Com efeito, se a teoria de castas pretende estabelecer um modelo geral e supra-histórico para a compreensão dos fenômenos sociais contingentes, ainda que não tenha a pretensão de ser um modelo preditivo de longo prazo, parece inevitável atribuir-lhe, ao menos, um poder preditivo de curto prazo ou mesmo um mero poder explicativo. Sem essas características, principalmente a segunda, não se entende como a teoria de castas possa sequer servir como instrumento para a compreensão de fenômenos sociais efetivamente acontecidos (o que Carvalho, durante o curso da obra, em suas análises históricas, não se furta a fazer).
6 – Sobre a polêmica de Cantor:
Parece haver, nessa discussão, uma confusão semântica. Carvalho fala, assumidamente, de infinito em sentido metafísico. Cantor, ao menos da maneira que foi apropriado pela matemática moderna, em sentido lógico estrito senso, isto é, lingüístico-formal. Trivialmente, são duas esferas diferentes. Ainda que Euclides não estivesse consciente da separação conceitual entre os dois âmbitos, parece claro que Cantor, no que refuta, do ponto de vista formal, o axioma euclidiano, trata do universo puramente matemático e não do universo metafísico. Aliás, no segundo sentido (metafísico), a matemática moderna tende a não falar mais nada sobre o assunto. Isso seria, hoje, objeto da filosofia da matemática. Claro, é evidente que o argumento de Carvalho (a bem da verdade, é de Guénon) contra Cantor pretende ser metafísico e reverberar na matemática, justamente porque Carvalho, assim como Guénon, assume o pressuposto de que não haveria distinção forte entre mundo e linguagem, esta seria um reflexo daquele. A refutação, portanto, valeria tanto para a metafísica quanto, secundariamente, para a matemática formal. Entretanto, para que a crítica, com esse duplo foco, se sustentasse, haveria de se comprar a tese de que realmente não haveria distinção forte entre o âmbito metafísico e o âmbito matemático. Ora, mas todos os sistemas para-consistentes em matemática são montados a partir dessa dicotomia e sua consistência formal não é afetada por questões metafísicas. Demais, o simples fato, incontestável, de que a matemática infinitesimal cantoriana de fato funciona, ao menos em parte, no mundo (um exemplo é o cálculo integral) parece ser boa evidência de que o problema talvez deva residir na extrapolação de um conceito de infinito puramente metafísico para o campo da matemática formal, não o inverso. Não se cuida, portanto, de dizer que a crítica a Cantor esteja necessariamente errada, mas que, se dela se pretende extrair desdobramentos no campo da matemática formal, então haveriam de ser apontadas evidências no sentido de que a matemática não pode afirmar-se como discurso autônomo independente da metafísica. Por fim, ainda que a matemática não pudesse ser independente da metafísica, ainda haveria que se mostrar que o infinito metafísico, ao qual aludem Carvalho e Guénon, de fato existe e não consistiria, quem sabe, numa mera invenção de metafísicos empedernidos.