segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Opinião Geral sobre o Livro

É evidente que O Jardim das Aflições foi confeccionado em dois momentos muito distintos (inclusive do ponto de vista da maturidade intelectual) da vida do autor, num período em que Carvalho parecia iniciar sua migração de um pensamento tradicionalista mais ortodoxo para um pensamento mais conservador (de direita). O que poderíamos chamar de a primeira metade da obra, que termina com o Livro 3, mostra Carvalho, ainda, a digerir suas fundas impressões sobre a palestra de Motta Pessanha, de sorte a tentar compreender no que consistiria a “tradição do materialismo”, bandeira sob a qual estariam reunidos, alegadamente, pensadores de feição tão díspar como Epicuro e Marx, bem como a estabelecer no que residiria a suposta aversão dessa assim chamada “tradição” à boa-nova da “consciência individual”, proclamada e concretizada, segundo Carvalho, pelo Cristianismo. Quanto a essa primeira parte (principalmente), algumas CRÍTICAS GERAIS, a nosso ver, fazem-se pertinentes:

1) ausência de maior amarração conceitual e de definições ostensivas e menos vagas de termos centrais no livro – como, por exemplo: "consciência individual", "verdade", "espiritualismo",
"tradição;

2) perpetração de falácias, algumas bem evidentes, que conferem desagradável ar retórico a parte da argumentação – vide caso das falácias (adiante demonstradas) da “lagartixa e do gato” e da transformação da realidade extra-mental por meio da prática do tetrafarmacon;

3) criação, por vezes, de bonecos de palha (ou expedientes retóricos semelhantes) – como no caso de Kant, Galileu e Newton;

4) encampação de argumentos que, aparentemente, não são de autoria própria, sem a pertinente citação à fonte – como no caso da crítica a Cantor, que se funda em análises efetuadas por René Guénon;

5) falta de foco mais fino em teorias sobre a “verdade” – o que leva Carvalho a juntar numa mesma rubrica, talvez de forma contra-produtiva, diversos critérios veritativos de implicações sensivelmente distintas, como o pragmatismo, o relativismo e o deflacionismo;

6) afirmações históricas peremptórias e desprovidas de menção a bibliografia mais abrangente no concernente a assuntos sabidamente controversos – como a natureza política da Inquisição espanhola, a liberdade de ir e vir do servo medieval, a relação esoterismo X exoterismo no Cristianismo;

7) ausência de exposição mais sistemática do pensamento “tradicionalista” ou “espiritualista” – recorrentemente invocado como sendo o conteúdo que, por oposição, dá substância ao “materialismo”.

8) tensão na adoção de uma “teoria de castas” – de inspiração “tradicionalista” – e na rejeição, simultânea, de qualquer teoria histórica.


Na segunda metade da obra, do Livro 4 em diante, é notável (e impressionante) a subida de qualidade do texto, pelo que muitas das críticas alhures referidas deixam de ter aplicação. Sobre as próprias conclusões da obra, são inequivocamente instigantes, mas somente podem ser postas à prova por meio de extensa pesquisa empírica que escapa, presentemente, a nossos objetivos marcadamente conceituais. Uma constatação inusitada da crítica “tradicionalista” feita por Carvalho à modernidade é sua surpreendente semelhança às críticas feitas por autores pós-modernos (alguns filiados a correntes neo-marxistas), como Lévinas, Deleuze e Baudrillard (ie. manipulação do aparato lingüístico-conceitual pelas elites, deificação da ciência como intérprete autêntica da realidade, funcionalização absoluta do indivíduo, opressão metafísica da sociedade de produção, etc.).
aaaaaa
De um modo geral, O Jardim das Aflições, conquanto seja obra provocadora e aguda, mormente em sua segunda parte, afigura-se mais como um livro de introdução ao vasto universo abordado por Carvalho, principalmente no que concerne às questões mais conceituais e metafísicas, que, por vezes, são tratadas superficialmente pelo autor. A impressão é de que o público alvo de Carvalho, nessa obra, não é aquele mais habituado à discussão filosófica e política, mas um público mais leigo, para o qual um apelo retórico (e até panfletário) muitas vezes é mais eficiente, do ponto de vista prático, da ação, do que uma exposição rigorosa do argumento.

Uma última observação de caráter geral deve ser feita. Para Carvalho, na linha do pensamento filosófico clássico (vide Aquino), somente existe verdadeira liberdade quando o indivíduo age de acordo com a moral e com o conhecimento objetivo. O erro e o pecado não são manifestações, portanto, da própria liberdade, mas meros sinais de que ela existe. É evidente que esse pressuposto é incompatível com um liberalismo político em sentido mais forte. Com efeito, nessa ordem de idéias, ainda que se entenda por bem resguardar a esfera estritamente privada dos indivíduos, na qual eles poderão “errar” e “pecar” a salvo da vigilância direta da sociedade, resta patente que a exteriorização de comportamentos considerados imorais, segundo os parâmetros “tradicionais”, é potencialmente subversiva, pelo que, em tese, poderia ser alvo de proibição. Assim, por exemplo, o homossexualismo e o ateísmo, que poderiam ser tolerados na esfera rigidamente privada dos indivíduos, mas não poderiam, possivelmente, ser socialmente tolerados como discurso político (ie. proselitismo). Aí está o conservadorismo (anti-liberal) de Carvalho exposto ao sol: monismo de valores e desconfiança da “excessiva” liberdade individual, quando traduzida em comportamento de índole política (reformista).

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