Como sucedâneo da perda do sentido da transcendência metafísica, o homem moderno, partidário do “materialismo”, ter-se-ia voltado à adoração de deuses cósmicos: o tempo e o espaço. O deus “temporal” estaria personificado nas forças históricas e sociais (cujo exemplo mais evidente seria o estruturalismo marxista, de fundo hegeliano); já o deus “espacial”, na ciência (cujo exemplo por excelência seria o positivismo comteano). À perda do sentido da transcendência teria correspondido, portanto, a sacralização do infinito cósmico, isto é, de um infinito material e quantitativo cujos limites e natureza não podemos, de fato, entender (Cusa, Cantor), e a sacralização do tempo, isto é, da dimensão temporal histórica (Hegel, Marx). Em síntese, a perda da transcendência teria provocado a mundanização do sentido da existência humana e o surgimento de um simbolismo religioso deturpado restrito à esfera da imanência.
Carvalho defende que a consciência individual, inimiga jurada do “materialismo”, fora afirmada, pela primeira vez, na Grécia antiga. Sócrates teria sido seu paladino primeiro, ao submeter a “verdade” social e sofística da polis ao escrutínio da contemplação teórica, os deuses antropomórficos do panteão ateniense à verdade transcendente. Sócrates teria inaugurado um espaço próprio para a consciência individual, uma interioridade autônoma, salvaguardada dos cultos públicos das religiões exotéricas (isto é, dos ritos públicos e das regras de comportamento coletivamente regulamentadas), das normatizações sociais, das decisões das assembléias políticas e das ingerências erráticas dos deuses cósmicos sobre o destino dos homens. Em suma, um canal de acesso direto (esotérico) à verdade objetiva, universal, sem necessidade de intermediação de estruturas sociais. É a dimensão vertical (esotérica) do homem com Deus, em oposição à dimensão horizontal do homem (exotérica) com a sociedade e o cosmos. Essa novidade socrática teria causado, segundo Carvalho, a primeira rachadura no paradigma da sociedade antiga, que fora, posteriormente, despedaçado pelo Cristianismo, com a progressiva submersão da cosmovisão greco-romana nos subterrâneos da história.
Nesse diapasão, no escólio do legado socrático, o Cristianismo teria: I) dessacralizado o Estado, ao apartar a dimensão social da dimensão individual (primado da consciência individual, da interioridade esotérica sobre a exterioridade exotérica); II) proclamado a possibilidade do acesso de todos à verdade, ao abolir a existência de conhecimentos secretos (exoterização da verdade). Com o avançar do tempo, contudo, a demasiada institucionalização da Igreja e a sua ascensão como poder político, resultado da necessidade de preencher o vazio deixado pela queda do Império Romano do Ocidente, teria ocasionado um retrocesso na (I) separação entre a dimensão temporal e a espiritual, mediante excessiva e indevida exoterização da (II) verdade sobre a própria consciência individual, ou seja, do mundo da imanência sobre a interioridade religiosa cristã (ie. esoterismo). Essa progressiva exoterização do esoterismo, no sentido da redução do espaço da consciência individual, teria preparado o terreno para que, com o advento dos Estados Nacionais, renascesse o antigo autoritarismo imperial romano, anti-individualista, sacerdotal e tutelar (o Estado sacralizado, assistencialista, da religião oficial), sob nova roupagem. Como na velha Roma pré-cristã de César, o governante voltava, na modernidade, a ser também o sacerdote.
São essas velhas forças anticristãs, anti-individualistas, de afirmação do social sobre a consciência individual (que exoterizam o esoterismo), às quais Carvalho batiza de “gnosticismo”. Um amálgama de ódio ao Cristianismo e de nostalgia da tradição imperial greco-romana, de religião cósmica e de sacralização da sociedade ou do Estado. Gnosticismo esse que teria irrompido, à época dos Estados Nacionais, na forma do Iluminismo Renascentista, com seus “deuses” cósmicos imanentes: Leviatã (deus da história/sociedade) e Behemoth (deus da ciência/natureza). A modernidade “progressista”, seja encarada em sua versão liberal, seja encarada em sua versão socialista (que se devoram inútil e perpetuamente uma à outra), seria a mais recente manifestação dessas milenares forças gnósticas e anticristãs, negadoras do espírito e apologéticas da matéria.
(continua ainda hoje)
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