terça-feira, 30 de setembro de 2008

Resumo do Jardim das Aflições - Parte VI

A aristocracia do novo império é, portanto, maçônica e a maçonaria desempenha o papel sacerdotal do poder moderador, de abrigar as facções de poder em disputa e legitimar o vencedor. Ela se distingue da Igreja não tanto pela sua ideologia infinitamente elástica mas seu modo secreto de funcionamento.

De fato aquilo que caracteriza a política contemporânea desde a participação maciça da maçonaria e de outras sociedades secretas nas revoluções americana e francesa é o poder acumulado das organizações secretas, cuja influência (na maior parte das vezes não direto, mas sacerdotal, como foi observado acima) chega a ser tanta que ela se torna inimaginável para o homem comum. O próprio imaginário do cidadão da sociedade democrática moderna, impregnado com a imagem da época contemporânea como a época da expansão dos direitos, impede que a noção da ação secreta na política seja algo mais que uma hipótese abstrata.

Esse despreparo do homem contemporâneo e em particular do intelectual é uma peça chave para que a influência das sociedades secretas chegue a moldar as concepções da população inteira. Pois isso significa que, quando ele conhece alguma sociedade secreta/esotérica ou guru misterioso, o intelectual moderno se encontra sem instrumentos para elaborar criticamente suas experiências. Desse modo, ele tende quase sempre à subserviência e à mistificação do fenômeno, ocultando sua verdadeira natureza e aumentando seu poder sobre o imaginário social.

A maçonaria, dado seu caráter secreto, só pode ser o esoterismo da religião do Império. Qual seria seu exoterismo? É a pluralidade de seitas que se multiplicam no ambiente democrático, protegida pelo estado laico, que Olavo no Jardim considera como o único “ganho” real da revolução americana.

O estado laico foi originalmente o arranjo escolhido para manter a paz numa nação nascente onde havia uma notável variedade de seitas protestantes. Sua conseqüência, no entanto, foi “a liquidação do poder político das religiões”.

No Estado laico, toda lei religiosa cessa de ter qualquer validade pública. Por isso, os critérios que presidem a vida social são supra-religiosos e o Estado se torna o árbitro entre os conflitos entre leis religiosas. Assim as leis religiosas só podem ser seguidas na medida em que elas estão de acordo com a moral oficial promovida pelo Estado. Ou seja, a religião é reduzida ao conceito de “espiritualidade privada” ou “religiosidade”, um adendo subjetivo, suplementar à moral laica.

Reduzidas à um aspecto subjetivo, individual, as grandes religiões, que formaram e sustêm as civilizações históricas, são equiparadas às seitas, dando a impressão do “supermercado religioso”. Não podendo aderir a qualquer lei religiosa, o Estado nega o direito à perpetuação das tradições religiosas por parte dos pais e protege o direito dos filhos de abandonarem as mesmas. De um modo geral, o Estado privilegia as morais agnósticas em qualquer disputa e convida todos a abandonarem seus grupos de referências com suas morais “suplementares”.

A religião, no entanto não é apenas uma moral subjetiva. Ela dá ao homem uma imagem simbólica do mundo, transmitida por meio de narrativas míticas (que fixam cosmovisões, valores e princípios educacionais) e iniciáticas (que atualizam e adaptam os mitos às situações locais e específicas). Ao reconhecer as situações das narrativas na sua própria vida, o ser humano é capaz de discernir o sentido da sua vida. Os mitos não estão aí para serem interpretados, mas para serem a chave para a leitura da realidade.

O cidadão do Império maçônico interpreta o mundo com base em mitos maçônicos, os quais passam a predominar nos séculos XVIII e XIX quando narrativas maçônicas passam a predominar nas grandes obras literárias. O desenlace derradeiro das narrativas cristãs se encontrava na salvação da alma e portanto, para além da obra, cujo sentido era deixado em aberto. As narrativas maçônicas, ao contrário, possuem um sentido puramente terrestre, de auto-realização no mundo imanente e potências supraterrenas só atuam como co-autores do sucesso e do fracasso mundano.

Os segredos cuja descoberta constitui o sentido da narrativa maçônica não são mais os Grandes Mistérios referentes ao conhecimento do infinito, mas os Pequenos Mistérios referentes às forças profundas que dirigem a história e o cosmos e ajudam o homem na sua realização terrena. O ideal humano deixa de ser aquele que faz a ponte entre o céu e a terra para ser a realização máxima em todas as esferas mundanas. Se repete na literatura o desvio do intelecto para o espaço e o tempo que ocorrera na filosofia.

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Resumo do Jardim das Aflições - Parte V

Essa conversão [da luta entre clero e nobreza na luta entre rei e parlamento] provocou uma alteração significativa no sentido da luta interna ao projeto imperial. O poder espiritual e o poder temporal, que antes se digladiavam, deram lugar para os novos combatentes, ambos representantes do poder temporal. Segundo Carvalho, a dinâmica dessa luta teria resultado, inexoravelmente, numa escalada de concentração de poder. Na ausência de uma tradição comum dentro da qual pudesse o processo político ocorrer, justamente o que era oferecido pela subordinação do poder temporal à autoridade espiritual, a luta pelo poder prolongar-se-ia indefinidamente.

A interminável luta política fora do abrigo da religião lembra o incessante conflito entre a natureza e a história quando eles não mais são unidos por um mesmo princípio transcendente. De fato, as teorias modernas que buscam divinizar o espaço e o tempo são a contrapartida intelectual da autodivinização do monarca absoluto e a nacionalização das igrejas. Para que o homem deixasse de obedecer a seus sacerdotes em favor do rei foi necessário que ele não mais buscasse o divino além do mundo, mas o encontrasse nas dimensões imanentes da natureza e da história. Assim como na República aos sucessivos regimes da cidade correspondem sucessivas configurações da alma humana, no Jardim cada projeto imperial supõe uma relação específica do homem com Deus.

O projeto dos impérios nacionais foi sucedido pelo projeto do império revolucionário. A autodivinização da nação substituiu a tensão entre o clero e os nobres pela batalha entre o parlamento e o rei, o corpo místico e seu representante. O novo império resolverá essa batalha ao dispensar a existência de uma autoridade espiritual, mesmo uma nacionalizada, que legitime o império. Enquanto Henrique VIII combinava em si mesmo as figuras de César e Cristo, Napoleão declarará que César é maior que Cristo. E enquanto o iogue comissário conseguia essa “síntese” mediante a ignorância voluntária, o império que ele serve terá como marca registrada o segredo.

Napoleão foi derrotado, mas o mesmo projeto deu fruto nos Estados Unidos, “república imperial, capitalista, maçônica e protestante”. Isso marca a terceira e última translação imperial. É importante observar que as translações imperiais não são só geográficas, mas também mudanças de projeto. E por isso, na translação que implanta o projeto imperial nos Estados Unidos, o projeto imperial ele mesmo deixa de ser o projeto de um império nacional. (1). Para compreender como isso é possível, isto é, um projeto de império que não tenha sua unidade assegurada por uma cabeça imperial nem sua autoridade fundada num corpo místico, é preciso prestar atenção no papel desempenhado pela maçonaria na formação do império americano pós-nacional.

As revoluções francesa e americana, que precedem os projetos da terceira Roma, constituem substituições da aristocracia de sangue européia, incapaz de se libertar de sua relação masoquista com a Igreja, por uma nova aristocracia iniciática. A modernidade caracteriza-se não pela democratização da vida política, mas pelo governo de arisotcracias que agem de forma secreta e fora de todo controle público. Aristocracia de facto, democracia de jure: uma combinação mantida apenas pelo caráter secreto da aristocracia.

Para ser mais específico, a aristocracia do Estados Unidos é toda maçônica: todos os signatários da Declaração de Independência são maçons. Olavo, contudo, rejeita toda noção conspiracionista no papel da maçonaria na história: ela não é um arquiteto invisível da história mundial, mas uma sociedade secreta que, pelo seu próprio modo de funcionar, molda o imaginário de seus membros e delimita seu campo de ação. A maçonaria é responsável segundo Olavo, não por este ou aquele evento histórico determinado, mas pela determinação do âmbito dentro do qual os eventos históricos se desenrolaram.

A maçonaria combina a rigidez iniciática de uma sociedade secreta com a liberdade formal de um grupo de debates. O resultado é que os ritos maçônicos, cuja execução e repetição molda o imaginário dos maçons, são objetos de discussão e interpretação livres, os quais asseguram que o sentido e os efeitos dos ritos permaneçam obscuros sob uma névoa de ambigüidades. A discussão livre só serve para tornar tanto mais tirânica a influência dos ritos sobre a mente.

O outro lado da moeda da névoa entorpecente doutrinal é a submissão que o maçom deve prestar a chefes inteiramente desconhecidos. Tanto em um caso quanto a outra a consciência individual nega a si mesma, se consagrando a ações cujos propósitos nem sentido ela conhece nem compreende. Carvalho diagnostica que esse abandono provém do desejo desproporcional de segurança, do medo injustificado, que faz com que o homem venda sua consciência em troca da proteção de sua vida. Carvalho dá o exemplo das vésperas da revolução francesa, quando a aristocracia francesa se filiou em massa à maçonaria, temendo o porvir.

(1) Por essa mesma razão, é imperioso não confundir as teses do Olavo que serão expostas logo agora com uma forma elaborada da conhecida etiqueta “imperialismo ianque”. Quando o império passou a estar nas mãos dos ianques, ele não cabia mais na mão de nenhum povo. Mais tarde, nos comentários ao Jardim das Aflições, a grande discussão sobre a compatibilidade entre o Jardim das Aflições e a americanofilia recente do Olavo será discutida em mais detalhes.

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Resumo de O Jardim das Aflições - Parte IV

Esse projeto [de um império cristão], no entanto, estaria viciado, assevera Carvalho, desde o começo em face de dois problemas:

A unidade do Império Romano residia na sua religião oficial, que reunia, numa só instituição, as funções sacerdotais e aristocráticas da sociedade estamental. Ora, como o cristianismo, advoga Carvalho, caracterizar-se-ia pela disponibilização do acesso à verdade transcendente à consciência individual (fora de toda mediação estatal), não seria possível que, num império cristão, fosse mantida a antiga unidade romana entre a casta aristocrática e a casta sacerdotal. A conseqüência, portanto, seria que as duas castas, agora apartadas, estariam inelutavelmente engajadas num conflito pela direção do império cristão.

Como então restaurar o império sem uma religião estatal? Mais: como seria possível desestatizar a religião? Não se trataria, alega Carvalho, apenas de encontrar uma solução para que a igreja pudesse desincumbir-se das responsabilidades que herdou do Império Romano, mas, principalmente, de resolver uma contradição inerente à noção mesma de “igreja”. A igreja é, por um lado, a hierarquia espiritual, que tem no seu topo os santos e, por outro, é uma organização política, o governo eclesial terrestre encabeçada pelo papa. A questão seria saber como poderia a igreja constituir-se e preservar-se como uma pura autoridade espiritual sem constituir um poder terreno. A edificação do império fora, segundo Carvalho, a solução desastrada para esse problema: extrusar da igreja o poder temporal num braço armado comandado por um imperador sagrado pela própria igreja.

O segundo problema seria de ordem mais prática. O antigo Império Romano era composto por uma classe aristocrática refinada e unida e contava com farta mão de obra escrava, enquanto os senhores feudais medievos eram incultos e encontravam-se enclausurados cada um em seu próprio feudo, no qual trabalhavam servos com direitos legalmente reconhecidos e não escravos reduzidos à animalidade. A disparidade de base econômica e organização social impedia a replicação na Europa medieval do antigo sistema vigente no Império Romano. Além disso, uma das atribuições do imperador cristão era justamente defender os direitos dos servos dos abusos do poder dos senhores, o que tornava a submissão a um imperador cristão ainda mais incômoda à aristocracia européia.

A ignorância dos senhores não só significaria ausência de cultura administrativa, mas constituiria empecilho na constituição de uma dinastia imperial que servisse aos interesses eclesiásticos. Pois, por um lado, os nobres eram inteiramente avessos ao estudo e ao culto religioso. Por outro, viam os padres com mistura de temor e desdém: transferiam-lhe a aura amedrontadora dos antigos druidas e, ao mesmo tempo, resistiam a aceitar que eles (os padres) pudessem ser alçados, eventualmente, da condição de servos à de nobres.

Nesse contexto difícil, sustenta Carvalho que teria sido somente devido a uma sucessão de acidentes felizes que um império cristão pudera existir sob o reinado de Carlos Magno e de seu sucessor Luís, o Piedoso. Carlos Magno pôde manter os nobres apaziguados apenas na medida em que havia terras para conquistar e riquezas para repartir, enquanto no reinado de Luís fora apenas sua personalidade individual e o temor que inspirava nos súditos que mantiveram a aristocracia alinhada com o projeto do império cristão. Após a morte de Luís, o império cristão se desfez e somente ressurgiu com o Sacro Império Romano, que jamais conseguiu, contudo, ser um império que unisse toda a cristandade ocidental – França e Inglaterra permaneceram obstinadamente dele separadas. Mais grave, o Sacro Império Romano sequer se revelou, durante todo o tempo, um “braço armado” confiável da Igreja. Com efeito, muitos de seus imperadores não só não foram sagrados pelo papa como alguns tentaram mesmo derrubá-lo.

Essa instável relação entre o clero e a nobreza minou o projeto imperial até que o advento das viagens transcontinentais viesse a mudar profundamente a situação dos povos europeus. Com a possibilidade de servir de “braço armado” da fé, conquistar terras e converter povos no além-mar, cada nação passou a postular sua própria candidatura autônoma a império, o que culminou no seccionamento do “braço armado” em vários impérios nacionais concorrentes. Eis, então, que surge grave problema. Ora, uma vez que o império cristão sempre fora compreendido como a manifestação política da igreja, somente poderia haver um império. Pelo menos enquanto houvesse somente uma igreja. A solução encontrada foi, justamente, a nacionalização e a multiplicação das igrejas. Seja pela via da fundação de uma igreja nova (como no caso de Henrique XVIII), seja pela via da cisma gerada pelas igrejas protestantes (como no caso de Suécia e Holanda), seja pela via da “nacionalização” do clero católico local (como no caso de Espanha e Portugal).

A multiplicação dos impérios levou à divisão da igreja, o que converteu o rei da nação no chefe da igreja local. A oposição milenar entre igreja e aristocracia resolveu-se mediante a auto-sacralização do estado, abonada pelos intelectuais das cortes palacianas com recurso à teoria do direito divino dos reis. Isso gerou um enorme problema. Tendo sido identificado o poder temporal com o poder espiritual, que antes regulava e legitimava aquele, restava determinar o modo como se reconhecia e se limitava a autoridade do soberano. A solução encontrada foi a de elevar a nação ao estatuo de um corpo místico, comparável ao corpo místico da igreja, representado agora no parlamento, o qual, por sua vez, sancionava o rei. A eterna luta entre os nobres e o clero converteu-se então na luta entre o rei e a nobreza.

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Resumo de O Jardim das Aflições - Parte III

No bojo do Livro IV d’O Jardim das Aflições, Carvalho procura desvelar a estrutura profunda que subjaz, segundo seu entendimento, à fusão de correntes contraditórias no discurso marxista-epicurista-novaera de José Américo Motta Pessanha. Estrutura essa que estaria epitomada na figura do iogue-comissário. A contraditoriedade das correntes seria revelada como a superfície de uma tensão entre dois movimentos complementares: a divinização do espaço e do tempo, da natureza e da história. De acordo com Carvalho, a divinização de qualquer um dos dois – da natureza ou da história – estaria fadada ao fracasso, pois nenhum deles estaria apto a subsistir de forma independente. A síntese entre os dois pólos somente seria possível com sua subsunção numa unidade de plano superior (metafísico); subsunção, contudo, de todo impossível, uma vez que seria justamente esse o plano que já teria sido abandonado na tentativa de divinizar o mundo imanente. Assim, o único modo para o iogue-comissário sustentar sua posição residiria na ignorância voluntária, que ocultaria o conflito insuperável entre “o deus da história” – Leviatã – e “o deus da natureza” – Behemoth.

Esse conflito seria, de acordo com Carvalho, cíclico por natureza. O culto do Estado (de Leviatã) inevitavelmente esbarraria no fato bruto de que o ser humano está submetido a forças naturais – behêmicas – além de seu controle, capazes de desfazer seus planos e projetos revolucionários do dia para a noite. Da decepção com o fracasso da empreitada leviatânica alimentar-se-ia o “deus da natureza”, Behemoth. No entanto, também o progresso da ciência behêmica conduziria apenas a novos saberes e a novas tecnologias, que somente radicalizariam a desumanização do homem como mero instrumento de medir e de contar. Mais uma vez, o processo desaguaria em decepção, numa pretensa, canhestra e insatisfatória divinização da Natureza, que abriria espaço para uma nova emergência (eternamente malsucedida) de Leviatã. O resultado desse conflito cíclico entre os “deuses imanentes”, que enlouqueceria a comunidade humana, seria, na lição de Carvalho, apenas a potenciação da natureza, de Behemoth, ainda que eternamente acossado por Leviatã.

No Livro V, propõe-se a seguinte pergunta: quia bono? Quem ganha com isso, a quem serve o iogue-comissário? A resposta de Carvalho, desenvolvida ao longo do texto, é que, por trás das tentativas modernas de divinizar o imanente, existe um tema mais antigo e permanente: a obsessão ocidental com a construção de um império. A construção desse império passaria por quatro translações: de Roma para Bizâncio (essa translação não é objeto de estudo no livro), de Bizâncio para diversas instituições políticas candidatas à formação de um império ocidental na cristandade medieval (a primeira vez sob Carlos Magno e a segunda na forma do Sacro Império Romano), depois para os impérios nacionais modernos (com o advento das viagens transcontinentais) e, por fim, para sua última encarnação imperial, consubstanciada nas repúblicas nacionais surgidas da revolução francesa e americana.

Carvalho identifica as origens do projeto imperial no ocidente cristão em três fatores, que teriam se tornado presentes após a queda do Império Romano no ocidente: o acúmulo de funções estatais nas mãos da igreja, a necessidade de proteger a Europa cristã das invasões dos bárbaros e a necessidade de afirmar a independência da igreja com respeito a Bizâncio. Essa conjunção de fatores teria impelido a igreja a construir um império cristão, entendido como seu braço armado para intervir em conflitos com os bárbaros e Bizâncio, e para o qual poderia, ela, a igreja, transferir suas responsabilidades recém-adquiridas.

Resumo do Jardim das Aflições - Parte II

Como sucedâneo da perda do sentido da transcendência metafísica, o homem moderno, partidário do “materialismo”, ter-se-ia voltado à adoração de deuses cósmicos: o tempo e o espaço. O deus “temporal” estaria personificado nas forças históricas e sociais (cujo exemplo mais evidente seria o estruturalismo marxista, de fundo hegeliano); já o deus “espacial”, na ciência (cujo exemplo por excelência seria o positivismo comteano). À perda do sentido da transcendência teria correspondido, portanto, a sacralização do infinito cósmico, isto é, de um infinito material e quantitativo cujos limites e natureza não podemos, de fato, entender (Cusa, Cantor), e a sacralização do tempo, isto é, da dimensão temporal histórica (Hegel, Marx). Em síntese, a perda da transcendência teria provocado a mundanização do sentido da existência humana e o surgimento de um simbolismo religioso deturpado restrito à esfera da imanência.

Carvalho defende que a consciência individual, inimiga jurada do “materialismo”, fora afirmada, pela primeira vez, na Grécia antiga. Sócrates teria sido seu paladino primeiro, ao submeter a “verdade” social e sofística da polis ao escrutínio da contemplação teórica, os deuses antropomórficos do panteão ateniense à verdade transcendente. Sócrates teria inaugurado um espaço próprio para a consciência individual, uma interioridade autônoma, salvaguardada dos cultos públicos das religiões exotéricas (isto é, dos ritos públicos e das regras de comportamento coletivamente regulamentadas), das normatizações sociais, das decisões das assembléias políticas e das ingerências erráticas dos deuses cósmicos sobre o destino dos homens. Em suma, um canal de acesso direto (esotérico) à verdade objetiva, universal, sem necessidade de intermediação de estruturas sociais. É a dimensão vertical (esotérica) do homem com Deus, em oposição à dimensão horizontal do homem (exotérica) com a sociedade e o cosmos. Essa novidade socrática teria causado, segundo Carvalho, a primeira rachadura no paradigma da sociedade antiga, que fora, posteriormente, despedaçado pelo Cristianismo, com a progressiva submersão da cosmovisão greco-romana nos subterrâneos da história.

Nesse diapasão, no escólio do legado socrático, o Cristianismo teria: I) dessacralizado o Estado, ao apartar a dimensão social da dimensão individual (primado da consciência individual, da interioridade esotérica sobre a exterioridade exotérica); II) proclamado a possibilidade do acesso de todos à verdade, ao abolir a existência de conhecimentos secretos (exoterização da verdade). Com o avançar do tempo, contudo, a demasiada institucionalização da Igreja e a sua ascensão como poder político, resultado da necessidade de preencher o vazio deixado pela queda do Império Romano do Ocidente, teria ocasionado um retrocesso na (I) separação entre a dimensão temporal e a espiritual, mediante excessiva e indevida exoterização da (II) verdade sobre a própria consciência individual, ou seja, do mundo da imanência sobre a interioridade religiosa cristã (ie. esoterismo). Essa progressiva exoterização do esoterismo, no sentido da redução do espaço da consciência individual, teria preparado o terreno para que, com o advento dos Estados Nacionais, renascesse o antigo autoritarismo imperial romano, anti-individualista, sacerdotal e tutelar (o Estado sacralizado, assistencialista, da religião oficial), sob nova roupagem. Como na velha Roma pré-cristã de César, o governante voltava, na modernidade, a ser também o sacerdote.

São essas velhas forças anticristãs, anti-individualistas, de afirmação do social sobre a consciência individual (que exoterizam o esoterismo), às quais Carvalho batiza de “gnosticismo”. Um amálgama de ódio ao Cristianismo e de nostalgia da tradição imperial greco-romana, de religião cósmica e de sacralização da sociedade ou do Estado. Gnosticismo esse que teria irrompido, à época dos Estados Nacionais, na forma do Iluminismo Renascentista, com seus “deuses” cósmicos imanentes: Leviatã (deus da história/sociedade) e Behemoth (deus da ciência/natureza). A modernidade “progressista”, seja encarada em sua versão liberal, seja encarada em sua versão socialista (que se devoram inútil e perpetuamente uma à outra), seria a mais recente manifestação dessas milenares forças gnósticas e anticristãs, negadoras do espírito e apologéticas da matéria.

(continua ainda hoje)

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Resumo das Idéias Mestras contidas na obra O Jardim das Aflições de Olavo de Carvalho- Parte I

O Jardim das Aflições (É Realizações, segunda edição, São Paulo: 2004), de Olavo de Carvalho, foi escrito, assumidamente, a partir da feroz rejeição do autor à palestra proferia por José Américo Motta Pessanha durante o ciclo de conferências sobre ética, promovida pela Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, em maio de 1990.

Em seu livro, Carvalho procura compreender no que consistiria a denominada “tradição do materialismo”, defendida, com entusiasmo, por Motta Pessanha, tradição essa que, segundo o filósofo por último mencionado, abarcaria pensadores variados como Epicuro e Karl Marx. Para Carvalho, a evidente ausência de uma continuidade de pressupostos teóricos ou mesmo de uma cosmovisão em comum entre Epicuro e Marx (mais do que isso, a verdadeira oposição aparentemente inconciliável existente entre epicurismo e marxismo: o primeiro a enfatizar a necessidade da fuga do homem do mundo real para afirmar o mundo da imaginação e, o segundo, a necessidade da destruição ativa do mundo imaginário para afirmar o mundo real) estaria a indicar que a pretendida unidade teorética da “tradição materialista”, defendida por Pessanha, não passaria de grosseira falsificação histórica e que, a rigor, essa pretendida “tradição” seria parasitária da única tradição historicamente consolidada, a do “espiritualismo” (de Platão a Husserl). Seria, portanto, a aversão ao “espiritualismo”, mais do que uma construção teórica positiva e sólida, que conformaria o verdadeiro perfil da “tradição materialista”.

Dada a aparente impossibilidade de identificar uma afinidade teórica (tampouco estética) entre o pensamento epicúreo e o marxista, como tipos de uma precária “tradição materialista”, restaria, de acordo com Carvalho, a possibilidade única da existência de afinidade prática, no nível da ação. Carvalho identifica essa afinidade de objetivos práticos na rejeição do mundo espiritual (do “espiritualismo”) – ou na rejeição da preponderância do mundo espiritual sobre o físico –, na negativa da possibilidade individual de conhecimento objetivo do mundo e no abraçamento do ethos revolucionário. Tanto epicuristas como marxistas, embora com nomenclaturas distintas (até opostas), buscariam a mesma meta: a destruição da Ordem Natural, a falsificação da realidade objetiva e a dissolução da consciência individual.

Em Epicuro, essa falsificação dar-se-ia por meio da disciplina do tetrafarmacon; em Marx, por meio da superação revolucionária da ideologia capitalista. Segundo Carvalho, a suposta alienação social propugnada por Epicuro, com a fuga para o “jardim” (espaço de meditação consagrado à prática da disciplina do tetrafarmacon), seria, na verdade, uma verdadeira subversão do “sentido da realidade objetiva” por meio do recurso à idealização. Dessarte, depois de admitida a inexistência de distinção substantiva entre aquilo que é e aquilo que eu penso, entre aquilo que o mundo é e aquilo que eu quero que ele seja, o objetivo final da prática do tetrafarmacon consistira na substituição do “sentido da realidade objetiva” pela realidade dos simulacros pensada pelos epicuristas. Como o próprio pensamento seria, para Epicuro, material (ie. a faculdade de pensar teria o poder de conferir existência material ao que é pensado), então o resultado da prática iterativa do tetrafarmacon, em última análise, consistiria na criação de uma realidade material coletiva plasmada pela “imaginação” – desde que todos, é claro, pensassem as mesmas coisas –, que viria a derrogar o próprio “sentido da realidade objetiva”. Essa progressiva substituição do “sentido de realidade objetiva” pela realidade fictícia não se limitaria, defende Carvalho, ao universo mental dos próprios entusiastas do tetrafarmacon, mas se propagaria, ao fim e ao cabo, pelo próprio mundo real, de sorte a substituí-lo por uma nova “realidade social”. Assim, para o autor de O Jardim das Aflições, a suposta alienação epicúrea seria apenas aparente. Quando bem analisada, revelaria o que de fato é: um idealismo revolucionário, que pretende substituir a realidade objetiva pela imaginação coletiva (delírio).

Analogamente, Marx padeceria de mal semelhante: idealismo revolucionário mistificador, que promete entregar o paraíso, mas somente ultima descerrar as portas do inferno. Carvalho afirma que o marxismo, assim como o epicurismo, seria também um falso materialismo, pois, a rigor, apresentaria características visceralmente idealistas (no sentido de rejeitar a realidade objetiva – ie. “não-revolucionária” – em prol de uma realidade socialmente construída pela classe proletária). Em suma, a aparente incompatibilidade entre epicurismo e marxismo seria superada, senão necessariamente do ponto de vista teórico, ao menos do ponto de vista prático. É com base nesse artifício que Motta Pessanha tê-los-ia classificado, ardilosamente, como pertencentes a uma suposta “tradição materialista” teorética (se tradição há, seria fundada somente na praxis – uma vez rejeitada a possibilidade de conhecer o mundo, restaria transformá-lo), ainda que, como pretende haver demonstrado Carvalho, ambas sejam, em verdade, exemplos de idealismo coletivista (anti-realista e anti-individualista).

Dessas conclusões, Olavo de Carvalho extrai as conseqüências que lhe parecem mais nefastas na “tradição” (fabricada por Motta Pessanha) do assim chamado “materialismo”:

a) ataque à consciência individual (em prol de uma consciência coletiva ou de classe);

b) enfraquecimento do critério de “verdade”, em razão da perda do “sentido da realidade objetiva” (em prol da realidade social);

c) subjugação da dimensão teórica à prática (da metafísica à ação social);

d) desprezo da tradição (encômio da ruptura revolucionária).

Advoga Carvalho que tais conseqüências revelar-se-iam os requisitos necessários para o estabelecimento da tirania da maioria e para a destruição do indivíduo como pessoa livre e moralmente responsável por seus atos. O remédio para essa patologia social, ainda que a administração do antídoto seja reconhecida como problemática por Carvalho, seria a reedificação da crença na verdade objetiva, na consciência individual, no primado da teoria sobre a prática e na validade da tradição, o que somente poderia ser levado a termo, em última instância, com o resgate da crença em Deus e na dimensão transcendental (uma vez que, na perspectiva de Carvalho, é na relação privada e personalíssima com o transcendente que se formata e mantém-se íntegra a consciência individual, sem a qual seria impossível apreender a verdade objetiva).

(segue na próxima segunda-feira).

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Apresentação

A proposta do presente blog é criar um espaço de fomento à discussão acerca do conservadorismo. Não se trata, alerte-se desde logo, de fazer apologia ao conservadorismo. Tampouco de rejeitá-lo. O escopo do blog é apresentar o pensamento conservador de forma sistêmica e concatenada, de modo a identificar elementos essenciais e duradouros, se é que existem, dessa particular tradição. Cuida-se, portanto, de traçar um quadro mais amplo do fenômeno, em que possam ser articuladas diversas posições açambarcadas pela rubrica genérica do conservadorismo. Nesse sentido, tentaremos elencar características substanciais do pensamento conservador, em lugar de uma mera classificação formal (ie. de simples manutenção do status quo vigente numa dada sociedade historicamente localizada, em oposição, grosso modo, ao progressismo).

O empreendimento pressupõe o estudo tanto de autores assumidamente de direita como autores que, embora sejam considerados, tradicionalmente, como representantes da esquerda, possam revelar, numa análise mais profunda, traços comuns ao conservadorismo de direita. Também serão abordados autores do denominado “tradicionalismo”, cuja classificação na tipologia reducionista esquerda/direita é problema, no mínimo, de difícil solução. Em suma, o objetivo do grupo é estudar o conservadorismo em sentido lato, o que pode incluir pensadores filiados tanto à direita como à esquerda do espectro político convencional. Identificar os pontos de contato entre pensadores historicamente separados pela Ciência Política mainstream em tradições diversas (muitas vezes até antagônicas) é, talvez, a meta mais ambiciosa do grupo. Um exemplo prático dessa possível aproximação teórica já é notado no surgimento da corrente política conhecida como Third Position.

Discussões políticas reais, atinentes à realpolitik, somente serão abordadas marginalmente, porquanto a orientação do blog é assumidamente acadêmica e teórica.

As postagens serão o resultado condensado dos estudos e das discussões levadas a cabo pelo grupo. Os autores das postagens estarão nominalmente identificados e não deverá ser incomum a eclosão de divergências entre os próprios membros do blog. O grupo terá como proposta estudar um texto ou livro de um pensador específico e as conclusões serão publicadas, periodicamente, no blog. Os livros e textos objetos de exame serão anunciados sempre com antecedência. Em razão do formato da mídia, as postagens deverão obedecer, em princípio, a uma periodicidade semanal, sempre nas segundas-feiras. Dada a complexidade dos assuntos constantes dos textos e dos livros abordados, deverá ser de praxe a publicação das conclusões do grupo em etapas e não em um só bloco, de sorte a facilitar, inclusive, a leitura por parte do visitante. Os livros e textos examinados serão primeiramente resumidos e, em seguida, serão plasmadas as críticas e as impressões dos membros do grupo, sempre com a identificação nominal da autoria das opiniões expostas.

Será muito bem-vinda a participação dos leitores, aos quais concitamos que deixem suas mensagens, sejam a veicularem críticas, elogios ou sugestões. A discussão livre, séria e conscienciosa de idéias é nossa proposta primordial.

Da equipe editorial,
S.R. Kneipp
Uriel Irigaray
Antonio Vargas

S.R. Kneipp
Formado em Direito e em Filosofia pela Universidade de Brasília, escritor e mestrando do curso de pós-gradução de Teoria Literária e Literaturas na mesma universidade, atua profissionalmente na área jurídica. Social-democrata não marxista (ex-simpatizante do PCB), ateu/agnóstico, mas não anti-religioso.

Uriel Irigaray
Formado em Letras com interesse em mitologia e religião. Tradutor e servidor público. Ex-ateu, pró-cristão sem filiação religiosa e pró-conservador interessado em liberalismo, paleo-conservadorismo, libertarianism etc.

Antonio Vargas
Formado em Filosofia pela Universidade de Brasília e com futuro acadêmico incerto no momento. Mantém o blog http://hegelasaboy.wordpress.com/, onde vez ou outra publica idéias filosóficas. Conservador (anti-revolucionário), cristão, mas não anti-moderno.