segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Resumo de O Jardim das Aflições - Parte IV

Esse projeto [de um império cristão], no entanto, estaria viciado, assevera Carvalho, desde o começo em face de dois problemas:

A unidade do Império Romano residia na sua religião oficial, que reunia, numa só instituição, as funções sacerdotais e aristocráticas da sociedade estamental. Ora, como o cristianismo, advoga Carvalho, caracterizar-se-ia pela disponibilização do acesso à verdade transcendente à consciência individual (fora de toda mediação estatal), não seria possível que, num império cristão, fosse mantida a antiga unidade romana entre a casta aristocrática e a casta sacerdotal. A conseqüência, portanto, seria que as duas castas, agora apartadas, estariam inelutavelmente engajadas num conflito pela direção do império cristão.

Como então restaurar o império sem uma religião estatal? Mais: como seria possível desestatizar a religião? Não se trataria, alega Carvalho, apenas de encontrar uma solução para que a igreja pudesse desincumbir-se das responsabilidades que herdou do Império Romano, mas, principalmente, de resolver uma contradição inerente à noção mesma de “igreja”. A igreja é, por um lado, a hierarquia espiritual, que tem no seu topo os santos e, por outro, é uma organização política, o governo eclesial terrestre encabeçada pelo papa. A questão seria saber como poderia a igreja constituir-se e preservar-se como uma pura autoridade espiritual sem constituir um poder terreno. A edificação do império fora, segundo Carvalho, a solução desastrada para esse problema: extrusar da igreja o poder temporal num braço armado comandado por um imperador sagrado pela própria igreja.

O segundo problema seria de ordem mais prática. O antigo Império Romano era composto por uma classe aristocrática refinada e unida e contava com farta mão de obra escrava, enquanto os senhores feudais medievos eram incultos e encontravam-se enclausurados cada um em seu próprio feudo, no qual trabalhavam servos com direitos legalmente reconhecidos e não escravos reduzidos à animalidade. A disparidade de base econômica e organização social impedia a replicação na Europa medieval do antigo sistema vigente no Império Romano. Além disso, uma das atribuições do imperador cristão era justamente defender os direitos dos servos dos abusos do poder dos senhores, o que tornava a submissão a um imperador cristão ainda mais incômoda à aristocracia européia.

A ignorância dos senhores não só significaria ausência de cultura administrativa, mas constituiria empecilho na constituição de uma dinastia imperial que servisse aos interesses eclesiásticos. Pois, por um lado, os nobres eram inteiramente avessos ao estudo e ao culto religioso. Por outro, viam os padres com mistura de temor e desdém: transferiam-lhe a aura amedrontadora dos antigos druidas e, ao mesmo tempo, resistiam a aceitar que eles (os padres) pudessem ser alçados, eventualmente, da condição de servos à de nobres.

Nesse contexto difícil, sustenta Carvalho que teria sido somente devido a uma sucessão de acidentes felizes que um império cristão pudera existir sob o reinado de Carlos Magno e de seu sucessor Luís, o Piedoso. Carlos Magno pôde manter os nobres apaziguados apenas na medida em que havia terras para conquistar e riquezas para repartir, enquanto no reinado de Luís fora apenas sua personalidade individual e o temor que inspirava nos súditos que mantiveram a aristocracia alinhada com o projeto do império cristão. Após a morte de Luís, o império cristão se desfez e somente ressurgiu com o Sacro Império Romano, que jamais conseguiu, contudo, ser um império que unisse toda a cristandade ocidental – França e Inglaterra permaneceram obstinadamente dele separadas. Mais grave, o Sacro Império Romano sequer se revelou, durante todo o tempo, um “braço armado” confiável da Igreja. Com efeito, muitos de seus imperadores não só não foram sagrados pelo papa como alguns tentaram mesmo derrubá-lo.

Essa instável relação entre o clero e a nobreza minou o projeto imperial até que o advento das viagens transcontinentais viesse a mudar profundamente a situação dos povos europeus. Com a possibilidade de servir de “braço armado” da fé, conquistar terras e converter povos no além-mar, cada nação passou a postular sua própria candidatura autônoma a império, o que culminou no seccionamento do “braço armado” em vários impérios nacionais concorrentes. Eis, então, que surge grave problema. Ora, uma vez que o império cristão sempre fora compreendido como a manifestação política da igreja, somente poderia haver um império. Pelo menos enquanto houvesse somente uma igreja. A solução encontrada foi, justamente, a nacionalização e a multiplicação das igrejas. Seja pela via da fundação de uma igreja nova (como no caso de Henrique XVIII), seja pela via da cisma gerada pelas igrejas protestantes (como no caso de Suécia e Holanda), seja pela via da “nacionalização” do clero católico local (como no caso de Espanha e Portugal).

A multiplicação dos impérios levou à divisão da igreja, o que converteu o rei da nação no chefe da igreja local. A oposição milenar entre igreja e aristocracia resolveu-se mediante a auto-sacralização do estado, abonada pelos intelectuais das cortes palacianas com recurso à teoria do direito divino dos reis. Isso gerou um enorme problema. Tendo sido identificado o poder temporal com o poder espiritual, que antes regulava e legitimava aquele, restava determinar o modo como se reconhecia e se limitava a autoridade do soberano. A solução encontrada foi a de elevar a nação ao estatuo de um corpo místico, comparável ao corpo místico da igreja, representado agora no parlamento, o qual, por sua vez, sancionava o rei. A eterna luta entre os nobres e o clero converteu-se então na luta entre o rei e a nobreza.

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