segunda-feira, 27 de outubro de 2008

3) Dos “bonecos de palha” e outras figuras de retórica:
a) Afirma Carvalho sobre o newtonianismo (p. 146):

“Ao rejeitar aparentemente Aristóteles, a ciência renascentista deu-lhe razão no fundo, na medida em que, para poder matematizar a física, teve se de afastar cada vez mais da realidade sensível até substituí-la totalmente pelos modelos matemáticos. Neste sentido, o cientista moderno que proclama que a física renascentista refutou Aristóteles comete, simplesmente, uma desonestidade intelectual.”

Em outro sentido, dizer que a ciência moderna não refutou o aristotelismo é, também, uma “desonestidade intelectual”. Refutou-a, sim, no sentido mais profundo, no sentido ontológico, uma vez que a física moderna é quantitativa, ao passo que a física aristotélica é qualitativa. É certo, e nisso Carvalho tem inteira razão, que o custo dessa mutação ontológica foi o afastamento da ciência das propriedades “sensíveis” da matéria (ie. secundárias). Contudo, não se pode olvidar do fato de que foi graças a esse afastamento que todo o conhecimento e a tecnologia modernos puderam ser desenvolvidos, o que não se conseguiu com os princípios da física do Estagirita. O ceticismo aristotélico quanto à utilização da matemática, portanto, não pode ser entendido sem a devida contextualização, sob pena de anacronismo. À dúvida aristotélica, deve-se opor a seguinte indagação (que não podia ser oposta, com essa força, à época de Aristóteles): se a matemática nos afasta do mundo, porque ela funciona tão bem no mundo? Um partidário do realismo científico diria que funciona, precisamente, porque lida com a estrutura mais profunda e verdadeira da realidade, para além das meras aparências do mundo sensível. A desconfiança aristotélica quanto à matemática, em verdade, parece ser tributária muito mais da falta de conhecimento que os próprios gregos (e Aristóteles) tinham do mundo empírico do que de uma radical visão metafísica qualitativa da natureza. É de indagar se, nascido hoje, Aristóteles ainda teria as mesmas ressalvas acerca da utilização da matemática, ao menos em relação aos fenômenos que independem, trivialmente, para sua ocorrência, da consciência humana.
b) Carvalho sobre Galileu (p. 151):

“Mas um fundo de charlatanismo parece já ter sido introduzido na física por Galileu, quando proclamou ter superado a noção da ciência antiga, segundo a qual um objeto não impelido por uma força externa permanece parado – uma ilusão dos sentidos, segundo ele. Na realidade, pontificava, um objeto em tais condições permanece parado ou em movimento retilíneo e uniforme. E, após ter assim derrubado a física antiga, esclarecia discretamente que o movimento retilíneo e uniforme não existe realmente, mas é uma ficção concebida pela mente para facilitar as medições. Ora, se o objeto não movido de fora permanece parado ou tem um movimento fictício, isto significa, rigorosamente, que ele permanece parado em todos os casos, exatamente como o dizia a física antiga, e que Galileu, mediante um novo sistema de medições, conseguiu apenas explicar por que ele permanece parado. Ou seja, Galileu não contestou a física antiga, apenas inventou um modo melhor de provar que ela tinha razão, e que o testemunho dos sentidos, sendo verídico o bastante, não tem em si a prova da sua veracidade – coisa que já era arroz-com-feijão desde o tempo de Aristóteles. Foi este episódio que inaugurou a mania dos cientistas modernos de tomarem simples mudanças de método como se fossem ‘provas’ de uma nova constituição da realidade.” (destaques no original).
É cristalino o equívoco em que labora Carvalho. O que Galileu negou foi a existência efetiva (e não a impossibilidade metafísica) de um sistema ideal em que o movimento retilíneo e uniforme e a ausência de movimento pudessem ser as alternativas para um estado do corpo. A negativa de Galileu, quando bem entendida, tem por objeto, portanto, a existência material das próprias condições iniciais necessárias para que o experimento possa realizar-se de fato. Ora, se as condições iniciais são fictícias, a alternativa entre movimento retilíneo e uniforme e a ausência de movimento também é fictícia. É absolutamente inválido, sob o aspecto lógico, negar as condições iniciais de um problema e pretender derivar, com base na formulação rejeitada do problema, uma de suas soluções previstas Com efeito, quando se rejeitam as condições iniciais, rejeitam-se também, como necessárias, as soluções previstas no enunciado. É ilógico rejeitar as premissas do problema e pretender manter (uma de) suas conclusões, de modo necessário. Se o sistema ideal suposto no problema inexiste, a única conclusão lógica é afirmar que a própria dicotomia prevista (M.R.U. ou ausência de movimento) pode ser enganadora. Refutadas as condições inicias do enunciado, nada pode ser dito, com base nessas condições iniciais, sobre ele, muito menos extrair-se uma conclusão obrigatória. Exemplificando: se não existe, na realidade material, um sistema sem atrito, não está o corpo adstrito a movimentar-se de forma uniforme e retilínea nem tampouco a ficar parado, porque essas são possibilidades, dadas pelo problema, para um sistema sem atrito. Obviamente, um sistema com atrito é outra história. Neste último, segundo Galileu, o corpo, ao deixar de ser submetido a uma força “externa”, não se movimenta de forma retilínea nem fica parado, o corpo move-se segundo o princípio da inércia. Carvalho, em verdade, perde-se ao não compreender que a inexistência material e contingente de sistema ideal, admitida por Galileu, afeta apenas o âmbito empírico (do existente), não o âmbito teórico (do possível). Como experiência de pensamento, o movimento retilíneo e uniforme, em Galileu, existe, sim, em possibilidade, num sistema idealizado, embora possa não existir, contingentemente, no mundo dos fatos. Para Aristóteles, sequer no mundo idealizado (sem atrito) o movimento retilíneo e uniforme existiria, porque ele é, na lição do Estagirita, impossível do ponto de vista teórico – não é uma possibilidade pensável dentro da sua teoria física – e não apenas do ponto de vista meramente factual. Em síntese, a impossibilidade de tal movimento (M.R.U.), para Aristóteles, é dada a priori pela sua própria teoria física, já para Galileu a inexistência de tal movimento (M.R.U.) é dada a posteriori pelas contingências do mundo empírico, não pela sua teoria (que, aliás, o admite expressamente, daí porque, via de conseqüência, refuta a teoria aristotélica). Em linguagem moderna, diríamos que a impossibilidade aventada por Aristóteles é metafísica (abarca todos os mundos metafisicamente possíveis), ao passo que a inexistência aventada por Galileu é empírica (abarca apenas este mundo empiricamente existente). Aristóteles fala de impossibilidade no próprio âmbito teórico, Galileu, de mera inexistência no âmbito empírico (ilustrando o que diz Galileu com uma analogia: no nosso mundo, não existem dragões, mas não há lei física que afirme ser impossível a sua existência, é mera contingência de nosso mundo empírico). Eis o erro fundamental de Carvalho: entender o termo “inexistência” (empírica, contingente), em Galileu, como sinônimo de “impossibilidade” (metafísica, necessária).

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