quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Resumo das Idéias Mestras contidas na obra O Jardim das Aflições de Olavo de Carvalho- Parte I

O Jardim das Aflições (É Realizações, segunda edição, São Paulo: 2004), de Olavo de Carvalho, foi escrito, assumidamente, a partir da feroz rejeição do autor à palestra proferia por José Américo Motta Pessanha durante o ciclo de conferências sobre ética, promovida pela Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, em maio de 1990.

Em seu livro, Carvalho procura compreender no que consistiria a denominada “tradição do materialismo”, defendida, com entusiasmo, por Motta Pessanha, tradição essa que, segundo o filósofo por último mencionado, abarcaria pensadores variados como Epicuro e Karl Marx. Para Carvalho, a evidente ausência de uma continuidade de pressupostos teóricos ou mesmo de uma cosmovisão em comum entre Epicuro e Marx (mais do que isso, a verdadeira oposição aparentemente inconciliável existente entre epicurismo e marxismo: o primeiro a enfatizar a necessidade da fuga do homem do mundo real para afirmar o mundo da imaginação e, o segundo, a necessidade da destruição ativa do mundo imaginário para afirmar o mundo real) estaria a indicar que a pretendida unidade teorética da “tradição materialista”, defendida por Pessanha, não passaria de grosseira falsificação histórica e que, a rigor, essa pretendida “tradição” seria parasitária da única tradição historicamente consolidada, a do “espiritualismo” (de Platão a Husserl). Seria, portanto, a aversão ao “espiritualismo”, mais do que uma construção teórica positiva e sólida, que conformaria o verdadeiro perfil da “tradição materialista”.

Dada a aparente impossibilidade de identificar uma afinidade teórica (tampouco estética) entre o pensamento epicúreo e o marxista, como tipos de uma precária “tradição materialista”, restaria, de acordo com Carvalho, a possibilidade única da existência de afinidade prática, no nível da ação. Carvalho identifica essa afinidade de objetivos práticos na rejeição do mundo espiritual (do “espiritualismo”) – ou na rejeição da preponderância do mundo espiritual sobre o físico –, na negativa da possibilidade individual de conhecimento objetivo do mundo e no abraçamento do ethos revolucionário. Tanto epicuristas como marxistas, embora com nomenclaturas distintas (até opostas), buscariam a mesma meta: a destruição da Ordem Natural, a falsificação da realidade objetiva e a dissolução da consciência individual.

Em Epicuro, essa falsificação dar-se-ia por meio da disciplina do tetrafarmacon; em Marx, por meio da superação revolucionária da ideologia capitalista. Segundo Carvalho, a suposta alienação social propugnada por Epicuro, com a fuga para o “jardim” (espaço de meditação consagrado à prática da disciplina do tetrafarmacon), seria, na verdade, uma verdadeira subversão do “sentido da realidade objetiva” por meio do recurso à idealização. Dessarte, depois de admitida a inexistência de distinção substantiva entre aquilo que é e aquilo que eu penso, entre aquilo que o mundo é e aquilo que eu quero que ele seja, o objetivo final da prática do tetrafarmacon consistira na substituição do “sentido da realidade objetiva” pela realidade dos simulacros pensada pelos epicuristas. Como o próprio pensamento seria, para Epicuro, material (ie. a faculdade de pensar teria o poder de conferir existência material ao que é pensado), então o resultado da prática iterativa do tetrafarmacon, em última análise, consistiria na criação de uma realidade material coletiva plasmada pela “imaginação” – desde que todos, é claro, pensassem as mesmas coisas –, que viria a derrogar o próprio “sentido da realidade objetiva”. Essa progressiva substituição do “sentido de realidade objetiva” pela realidade fictícia não se limitaria, defende Carvalho, ao universo mental dos próprios entusiastas do tetrafarmacon, mas se propagaria, ao fim e ao cabo, pelo próprio mundo real, de sorte a substituí-lo por uma nova “realidade social”. Assim, para o autor de O Jardim das Aflições, a suposta alienação epicúrea seria apenas aparente. Quando bem analisada, revelaria o que de fato é: um idealismo revolucionário, que pretende substituir a realidade objetiva pela imaginação coletiva (delírio).

Analogamente, Marx padeceria de mal semelhante: idealismo revolucionário mistificador, que promete entregar o paraíso, mas somente ultima descerrar as portas do inferno. Carvalho afirma que o marxismo, assim como o epicurismo, seria também um falso materialismo, pois, a rigor, apresentaria características visceralmente idealistas (no sentido de rejeitar a realidade objetiva – ie. “não-revolucionária” – em prol de uma realidade socialmente construída pela classe proletária). Em suma, a aparente incompatibilidade entre epicurismo e marxismo seria superada, senão necessariamente do ponto de vista teórico, ao menos do ponto de vista prático. É com base nesse artifício que Motta Pessanha tê-los-ia classificado, ardilosamente, como pertencentes a uma suposta “tradição materialista” teorética (se tradição há, seria fundada somente na praxis – uma vez rejeitada a possibilidade de conhecer o mundo, restaria transformá-lo), ainda que, como pretende haver demonstrado Carvalho, ambas sejam, em verdade, exemplos de idealismo coletivista (anti-realista e anti-individualista).

Dessas conclusões, Olavo de Carvalho extrai as conseqüências que lhe parecem mais nefastas na “tradição” (fabricada por Motta Pessanha) do assim chamado “materialismo”:

a) ataque à consciência individual (em prol de uma consciência coletiva ou de classe);

b) enfraquecimento do critério de “verdade”, em razão da perda do “sentido da realidade objetiva” (em prol da realidade social);

c) subjugação da dimensão teórica à prática (da metafísica à ação social);

d) desprezo da tradição (encômio da ruptura revolucionária).

Advoga Carvalho que tais conseqüências revelar-se-iam os requisitos necessários para o estabelecimento da tirania da maioria e para a destruição do indivíduo como pessoa livre e moralmente responsável por seus atos. O remédio para essa patologia social, ainda que a administração do antídoto seja reconhecida como problemática por Carvalho, seria a reedificação da crença na verdade objetiva, na consciência individual, no primado da teoria sobre a prática e na validade da tradição, o que somente poderia ser levado a termo, em última instância, com o resgate da crença em Deus e na dimensão transcendental (uma vez que, na perspectiva de Carvalho, é na relação privada e personalíssima com o transcendente que se formata e mantém-se íntegra a consciência individual, sem a qual seria impossível apreender a verdade objetiva).

(segue na próxima segunda-feira).

7 comentários:

EdgarWZ disse...

Boa análise do texto do Olavo. Parece interessante a proposta do blog. Voltarei aqui mais vezes para acompanhar os textos de vcs.

Uma pergunta: vcs devem conhecer o "apelo" do Olavo em prol da formação de uma nova elite cultural brasileira não-revolucionária e consciente da necessidade da preservação da alta cultura. Vcs se movem dentro desse espírito de resgate e formação de uma nova elite cultural?

De um ateu, pró-religião (cristianismo especialmente), liberal (campo econômico), pró-conservador (valores e cultura) e estudante de mestrado em filosofia (mistura improvável, mas possível :)

Anônimo disse...

A idéia de utilizar as tradições para resgatar a "consciência individual" é cafetinar a Tradição em nome de delírios personalistas. Todas as tradições religiosas legítimas negam a consciência individual, este é um dos erros chave de Olavo no "Jardim" (além de outros absurdos, como o Não-Ser).

S.R. Kneipp disse...

Salve, Defier.

Não posso responder pelo Antônio e pelo Uriel, mas, de minha parte, não estou inserido nesse projeto de resgate/formação de uma nova elite cultural.

A proposta do blog não é política nem proselitista.

abs.

S.R. Kneipp.

S.R. Kneipp disse...

Salve, Daher.

Eu desconfio que vc está certo.

Mas essa parte do gnosticimo/esoterismo/consciência individual (que eu conheço pouquíssimo) ficará a cargo do Uriel.

Nas próximas semanas, ele irá publicar o texto dele.

abs,

Antonio Vargas disse...

Essa crítica tradicional da consciência individual parte do seu contraste com estados supraindividuais e não de sua autonomia com respeito à coletividade, que é onde as teses do Olavo se movem.

Prayana Kale disse...

Olá Antônio,

"Essa crítica tradicional da consciência individual parte do seu contraste com estados supraindividuais e não de sua autonomia com respeito à coletividade, que é onde as teses do Olavo se movem."

Na verdade, diante das possibilidades de realização (AUTO-REALIZAÇÃO) não há questões como autonomia em respeito à coletividade. Para aquele que é conhecedor da natureza de todas as coisas (sarva-dharma-janna), a tirania coletiva é a mesma coisa que a autonomia individual. As duas são ilusórias. O erro do Olavo está em cafetinar a Tradição para afirmar que a tirania coletiva é contrária à realização individual, o que é bobagem.

Antonio Vargas disse...

a sua ênfase na AUTOrealização não indica justamente que a realização não é indiferente à existência de um autos, de uma consciência individual?

Ademais, um argumento que prova demais nada prova. Por esse critério a autorealização é indiferente não somente à oposição individualidade da consciência vs. absorbção no coletivo mas também a tudo que há debaixo do sol e a doutrina se esvazia de todo conteúdo.