segunda-feira, 20 de outubro de 2008

COMENTÁRIO E DEMONSTRAÇÃO PORMENORIZADA DA PROCEDÊNCIA DE ALGUNS PONTOS ESPECÍFICOS DAS CRÍTICAS:

1 – Das falácias:
a) Carvalho afirma (p. 51), acerca de Epicuro, o que se segue:

“Se os deuses falam, é porque pensam. Se pensam, têm memória e imaginação; e como tudo o que aparece na memória e na imaginação tem, segundo Epicuro, existência (só que mais rarefeita que a do corpo), segue-se que as coisas que os deuses recordam e imaginam existem materialmente nesse mesmo instante. Sendo essas coisas, porém, mais rarefeitas do que os corpos dos deuses que as imaginam, a equação epicúrea de que rarefação = durabilidade obriga-nos a admitir que elas são mais duráveis do que os deuses mesmos. E se por acaso ocorresse a um deus a idéia desastrosa de pensar num gato ou numa lagartixa, estes miseráveis mortais ficariam, ipso facto, dotados de uma durabilidade maior que a dos deuses.”

É evidente a falácia do argumento. Ainda que os deuses “pensassem”, no sentido humano do termo (Epicuro não diz que eles “pensam” como humanos, apenas que “conversam” entre si, seja lá exatamente o que isso signifique), em lagartixas e gatos, a conclusão lógica do raciocínio não seria, como pretende Carvalho, que a própria lagartixa ou o gato, isto é, os objetos extra-mentais (em linguagem moderna: as referências), tornar-se-iam, ipso facto, mais duráveis do que os deuses, mas, antes, que as idéias dos deuses sobre aqueles seres extra-mentais (gatos e lagartixas) seriam mais duráveis do que eles, deuses. Em suma, não se segue das premissas expostas a conclusão de que a lagartixa e o gato seriam mais duráveis do que os deuses, mas, tão-somente, de que as imagens mentais de lagartixa e de gato o seriam, ainda que sejam, elas mesmas, materiais. Carvalho opera um salto lógico ao passar da mera imagem mental (ainda que seja também material) à própria referência. O argumento, portanto, é curto e, suas conclusões, falaciosas. Sem embargo, além de ser curto, o argumento, a rigor, não poderia ser corrigido, mediante a explicitação de premissas que estão ocultas, a fim de preservarem-se íntegras as conclusões, sem que, com isso, fosse gravemente afrontado o próprio sistema epicúreo.
Dessarte, os simulacros, para Epicuro, não são as próprias coisas, mas projeções dessas, de modo que imaginar uma coisa, repita-se, não converte o pensamento em realidade extra-mental. A falácia de Carvalho reside na pretensão de derivar logicamente da mera existência do pensamento (sobre algo) a existência extra-mental desse algo. Explica-se: é certo que, na teoria física epicúrea, a existência do simulacro, da sensação, garante, ipso facto, a existência extra-mental do objeto, já que o primeiro (simulacro) emana necessariamente do segundo (objeto). Contudo, há de se atentar para o seguinte. Uma coisa é afirmar que a sensação deve corresponder necessariamente a um objeto extra-mental. Outra, muito diversa, é dizer que cada resgate à memória – na linguagem epicúrea, cada prolepse – procedida pelo indivíduo (mesmo que esse “indivíduo” seja um deus) substancializa, a cada uma dessas vezes, o objeto lembrado, na esfera extra-mental. Deveras, o que deve ter um correspondente obrigatório no mundo extra-mental é a imagem formada pela experiência (sensação) direta com o objeto, isto é, com os simulacros emanados do objeto. No entanto, o mero resgate da lembrança (prolepse) daquela imagem (sensação) guardada na memória não tem o condão de plasmar novamente o objeto lembrado no mundo externo ao indivíduo. Daí porque mesmo que os deuses pensassem sobre uma lagartixa ou um gato, tal fato não converteria o pensamento em uma nova lagartixa ou em um novo gato, a povoarem o universo extra-mental do indivíduo. A um, porque, fosse esse pensamento provocado por uma sensação, o objeto já teria de preexistir, no mundo, à sensação – não seria, portanto, o pensamento que lhe daria consistência física na realidade extra-mental. A dois, porque, fosse esse pensamento um resgate de memória (prolepse), não só a lembrança armazenada como até mesmo a sensação do objeto (a imagem/simulacro) teriam de preexistir ao objeto – não seria, portanto, de igual modo, o pensamento que lhe daria consistência física na realidade extra-mental (a esse propósito, ver Giovanni Reale, História da Filosofia Antiga, vol III, pp. 155 e seguintes).
b) Outra afirmação de Carvalho sobre Epicuro (p. 47):

“(...) tentemos tirar as conseqüências lógicas da teoria (de Epicuro). Se os deuses são, de um lado, o modelo do bem, e, de outro, a imagem do ideal espiritual que norteia os esforços do asceta epicurista, então eles não apenas são causa de alguma coisa, mas o são duplamente: em linguagem aristotélica, são causa formal do bem e causa final da vida ascética.” (destaques no original).

Claramente é falaciosa a conclusão. Os deuses, para Epicuro, têm um aspecto positivo meramente como modelos, como ideal de vida. Rigorosamente, os deuses não são “o modelo do bem”, eles são o modelo da boa vida, isto é, da vida contemplativa. O bem não é identificado com os deuses. Em linguagem aristotélica, eles, os deuses, seriam, portanto, a causa final da vida ascética, mas não a causa formal do bem, como erradamente sustenta Carvalho (ademais, parece de todo estranho à metafísica aristotélica perguntar-se, como pretende Carvalho, acerca da causa formal do bem, senão de modo tautológico e auto-referente). Eles, os deuses, somente seriam, em certo sentido, causa formal do bem se eles próprios fossem o bem. Mas não o são. Os deuses epicúreos apenas contemplam o bem. Se o contemplam, não podem ser, evidentemente, o próprio bem (sua causa formal). Mutatis mutandis, o erro de Carvalho é crer que um modelo ou um símbolo sejam a própria coisa simbolizada, como se um santo cristão que leva uma vida exemplar fosse a própria encarnação do bem e não um mero modelo ou símbolo de boa virtude cristã. Assim os santos, assim os deuses passivos de Epicuro.
2) Da aproximação entre Epicuro e Marx:
A falácia antes apontada em 1 “a” é, aqui, importantíssima para perceber a maior fraqueza da aproximação que Olavo tenta fazer entre Epicuro e Marx. Com efeito, se a imaginação, em Epicuro, não tem o poder de alterar a realidade externa – aquela dos objetos, da materialidade extra-mental –, mas apenas a realidade interna – aquela dos simulacros (quando percebidos por um dado indivíduo ou um conjunto de indivíduos), da materialidade intra-mental –, então a “revolução” epicúrea é mera alienação individual, um ensimesmamento, ainda que seja um delírio compartilhado por muitos, ao passo que, em Marx, é verdadeira transformação ativa, via revolução de classe, da realidade extra-mental.

Nenhum comentário: